«Em
todas as almas, como em todas as casas, além da fachada, há um interior
escondido». In Raul Brandão
«(…)
E, ainda, ninguém compreendia como de duas pessoas
nada bonitas (os olhos de Justina eram belos e não bonitos) pudera nascer uma
filha de tal maneira graciosa como fora a pequena Matilde. Dir-se-ia que a
Natureza se enganara e que, depois, descobrindo o engano, se emendara fazendo desaparecer
a criança. O certo é que o violento e áspero Caetano Cunha, linotipista no
Notícias do Dia, sempre a estalar de gordura, novidades e má criação, após três
exclamações agressivas calava-se a um
murmúrio da mulher, a diabética e débil Justina que um sopro bastaria para
derrubar. Era um mistério que não conseguia descobrir. Esperou ainda, mas o
silêncio era total. Recolheu a casa, cerrando a porta com cuidado para não
acordar a filha que dormia. Que dormia ou fingia dormir. Rosália espreitou pela
frincha da porta. Pareceu-lhe ver estremecerem as pálpebras da filha. Abriu a
porta completamente e avançou para a cama. Maria Cláudia cerrava os olhos com
força demasiada e escusada. Rugas pequeninas, vincadas pelo esforço,
assinalavam o lugar onde mais tarde viriam a aparecer os pés-de-galinha. A boca
carnuda conservava ainda restos de bâton do dia anterior. Os cabelos castanhos,
cortados curtos, davam-lhe um ar de garoto rufião que lhe tornava a beleza
picante e provocadora, quase equívoca.
Rosália mirava a filha, um tanto desconfiada daquele sono
profundo que tinha todo o ar de impostura. Deu um pequeno suspiro. Depois, num
gesto de carinho maternal, aconchegou a roupa em volta do pescoço da filha. A
reacção foi imediata. Maria Cláudia abriu os olhos. Riu muito, quis disfarçar, mas já era tarde: fez-me
cócegas, mãezinha! Furiosa porque fora lograda e, sobretudo, porque a filha a
surpreendera em flagrante delito de amor maternal, Rosália respondeu de mau
humor: era assim que dormias, não era?! Já não te dói a cabeça, pois não? O que
tu não queres é trabalhar, preguiçosa! Como a dar razão à mãe, a rapariga
espreguiçava-se devagar, saboreando o distender dos músculos. A camisinha
enfeitada de rendas abria-se no movimento em que o peito alargava, e deixava
ver dois seios pequenos e redondos. Embora incapaz de dizer por que entendia
que aquele movimento descuidado a ofendia, Rosália não pôde reprimir o seu
desagrado e resmungou: vê lá se te tapas! Vocês, hoje, são de tal maneira que
nem se envergonham na presença da vossa mãe! Maria Cláudia esbugalhou os olhos.
Tinha-os azuis, de um azul brilhante, mas frios, tal como as estrelas que estão
longe e de que, por isso, só percebemos a luminosidade.
Mas, que mal faz? Pronto! Já estou tapada. No tempo em que
eu tinha a tua idade, se aparecesse assim diante da minha mãe levava uma
bofetada. Olhe que era bater por bem pouco... Achas? Pois era o que tu
precisavas. Maria Cláudia ergueu os braços num espreguiçamento disfarçado.
Depois, bocejou: os tempos são outros, mãe. Rosália respondeu, enquanto abria a
janela: são outros, são. São piores. Depois voltou à cama: vamos a saber: vais
trabalhar ou não? Que horas são? Quase dez. Agora já é tarde. Mas há bocado não
era. Doía-me a cabeça. As frases curtas e rápidas denunciavam irritação de
parte a parte. Rosália fervia de cólera reprimida, Maria Cláudia estava aborrecida com as
observações moralizadoras da mãe. Doía-te a cabeça, doía-te a cabeça! Fingida,
é que tu és!... Já disse que me doía a cabeça. Que quer que lhe eu faça? Rosália
explodiu: é assim que se responde, menina? Olha que sou tua mãe, ouviste?
A rapariga não se atemorizou. Encolheu os ombros, querendo
significar com o gesto que aquele ponto não merecia discussão, e, de um salto,
levantou-se. Ficou de pé, descalça, com a camisa de seda descendo-lhe pelo
corpo macio e bem formado. Na fervura da irritação de Rosália caiu a frescura
da beleza da filha e a irritação desapareceu como água em areia seca. Rosália
sentiu-se orgulhosa de Maria Cláudia, do lindo corpo que ela tinha. As palavras
que disse a seguir eram uma rendição: tem
que se avisar para o escritório». In José Saramago, Claraboia, 1953, Editorial
Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
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