Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Os últimos alunos que
transitavam junto à janela do claustro de Mateo Colombo ficavam nas pontas dos
pés e olhavam para o interior; então o anatomista podia ouvir os murmúrios e as
risadinhas maliciosas daqueles que, até ontem, tinham sido seus alunos, e mesmo
dos que poderiam ter chegado a tornar-se seus fiéis discípulos. Podia vê-los. Embora
talvez devesse dar graças pela sua sorte, Mateo Colombo amaldiçoou o dia em que
saiu de sua Cremona natal. Amaldiçoou o dia em que o seu actual algoz, o
reitor, decidiu colocá-lo à frente da cadeira de anatomia e cirurgia. E amaldiçoou
o dia em que, quarenta e dois anos antes, nascera.
Il Chirologi, como diziam os seus
conterrâneos, Il Cremonese, no seu exílio em Pádua, Mateo Realdo Colombo havia
estudado Farmácia e Cirurgia na Universidade em que agora estava preso. Foi o
mais brilhante discípulo de Leoniens, primeiro, e de Vesalio, depois. Quando
partiu, em 1542, para fazer escola na Alemanha e na Espanha, o próprio mestre Vesalio
sugeriu ao reitor, Alessandro Legnano, que o seu discípulo cremonense herdasse
a cátedra. Ainda muito jovem, Mateo Colombo ganhou, por direito, o título de Maestro dei maestri. Para orgulho
de Alessandro Legnano, o catedrático cremonense descobriu as leis da circulação
pulmonar antes do seu colega, o inglês Harvey, que injustamente recebeu os
louros. Muitos o consideraram lunático quando afirmou que o sangue se oxigena
nos pulmões e que não existem orifícios no tabique que divide as duas metades
do coração, atrevendo-se a refutar o próprio Galeno. E, por certo, aquela era
uma afirmação perigosa: um ano antes, Miguel Servet vira-se obrigado a fugir da
Espanha quando declarou, no seu Christianismi
Restitutio, que o sangue era a alma da carne, anima ipsa est sanguis. A sua
tentativa de explicar em termos anatómicos a doutrina da Santíssima Trindade
levou-o às fogueiras de Genebra, onde o queimaram com lenhos verdes para
prolongar a agonia. Mas os louros da descoberta de Mateo Colombo iriam, cem
anos depois, para o inglês Harvey, que, como assinalou Hobbes em De Corpore, foi o único
anatomista que viu a sua doutrina ser aceita em vida.
Mateo Colombo era, eminentemente,
italiano; filho da plástica, da gala e do ornamento. Filho pródigo daquela Itália
na qual tudo, das cúpulas das catedrais até ao copo no qual o lavrador bebia,
dos afrescos que enfeitavam os palácios até à foice com que o camponês ceifava,
dos capitéis bizantinos das igrejas até ao cajado do pastor, tudo era de uma
feitura prodigiosa. Daquela mesma feitura era o espírito de Mateo Colombo; da
mesma graça ornamental, da amável gentilezza
italiana. Tudo estava animado pelo hálito de Leonardo: o artesão era
artista; o artista, cientista; o cientista, guerreiro; e o guerreiro, de novo,
artesão. Saber também era, além do mais, saber fazer com as mãos. Caso faltem
exemplos, o próprio papa Eugénio I havia cortado com as suas próprias mãos a
cabeça de um prefeito um pouco díscolo. Com a mesma mão com que deslizava a
pena pelo caderno de capa de pele de cordeiro, Mateo Colombo sabia empunhar o
pincel e preparar os óleos com os quais pintou os mais esplêndidos mapas anatómicos;
era capaz, se quisesse, de pintar como Signorelli ou o próprio Michelângelo. No
seu autorretrato, apresentou-se como um homem de traços finos porém enérgicos;
os olhos negros e a barba escura e espessa revelavam, talvez, uma ascendência
moura. A testa, alta e proeminente, era emoldurada por dois cachos que desciam
até aos ombros. Segundo o seu próprio testemunho, tinha mãos delicadas e pálidas,
cujos dedos, longos e finos, conferiam-lhe uma elegância que se diria quase
feminina. Segurava o escalpelo entre o indicador e o polegar. O autorretrato não
foi apenas um fiel testemunho da sua fisionomia, mas também da sua obsessão;
olhando-se bem, pois é francamente difícil perceber, em baixo do bisturi, na
base inferior do quadro, pode-se distinguir, em meio a uma bruma difusa, o
corpo nu e inerte de uma mulher. A pintura lembra outra, sua contemporânea: o São Bernardo de Sebastiano
del Piombo; a desproporção entre a beatitude da expressão do santo e sua
atitude, a enfiar o cajado no corpo de um demónio, é a mesma que transparece no
gesto do anatomista afundando o escalpelo na carne feminina. Uma expressão de
triunfo.
Numa época
feita de nomes, de singularidades, Mateo Colombo usava o seu nome como quem
carrega um lastro. Como evitar o forçoso lugar nas sombras a que o seu ilustre xará
o submetia? Mateo Colombo estava condenado à paródia, à zombaria fácil dos
detractores. A sua obra, decerto, não foi menos extraordinária que a do seu homónimo.
Ele também descobriu a sua América e, como ele, soube da glória e da desgraça.
E soube da crueldade. Mateo Colombo, ao fundar a sua colónia, não teve mais escrúpulos nem piedade que Cristóvão.
O madeiro da haste fundadora não estaria fincado nas tépidas areias do trópico,
mas no centro das terras descobertas que reclamou para si: o corpo da mulher». In
Federico Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes
Narrativas, 1998, ISBN 978-972-232-362-8.
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