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O corvo e o seu amo sabiam quem era quem. E por isso mesmo nutriam um mútuo e
velado receio. Leonardino, esse era o nome que o amo lhe dera, nunca pousava
confiante no ombro do seu senhor; mantinha uma distância mínima entre as suas
patas e a estola, elevando-se com um bater de asas curto e regular. O amo também
não se fiava do companheiro. Um e outro, ambos sabiam disso, compartilhavam o
mesmo espírito inquisitivo de indagar o que se oculta por trás da carne. Ouviu-se
a segunda badalada e o amo continuava sem aparecer. Algo estranho estava
acontecendo, o corvo podia adivinhar. Todos os dias, Leonardino, pousado na
balaustrada da escadaria da morgue, acompanhava atentamente os movimentos do
amo, as mãos que guiavam sabiamente o escalpelo; então, ao ver o sangue que
surgia por trás do fino sulco que a lâmina deixava na sua passagem, Leonardino
se balançava da esquerda para a direita e emitia um grasnido de satisfação. Por
mais que tenha tentado, o amo não conseguira fazer com que Leonardino comesse
da sua mão. Na verdade, não faltavam motivos para temer: o corvo sabia de quem
era a tripa que o amo lhe oferecera no dia anterior, reconhecia o cheiro
daquele gato que, até ontem, sentava-se confiante no colo do homem que o
esvaziara por dentro para dissecá-lo com a mesma mão que o acariciava e lhe
dava de comer.
Leonardino..., cantarolava o amo
enquanto se aproximava lentamente do corvo, com o braço estendido brandindo uma
tripa. Leonardino..., repetia, e, à medida que avançava um passo, o corvo retrocedia
outro. Leonardino não olhava para a tripa; sentia o cheiro dela, mas não olhava.
Mantinha os olhos fixos nos do amo, que, ao que tudo indica, pareciam-lhe mais
apetitosos que aquele pedaço de intestino. Então o homem jogava-lhe a tripa, e
o corvo a segurava no bico com uma voracidade longamente contida. Naquela manhã,
contudo, ninguém apareceu na arcada. Soava a terceira badalada quando o corvo
teve certeza de que o seu amo não compareceria ao encontro quotidiano.
Desgostoso e faminto, alçou voo rumo a Veneza.
O
nome do amo era Mateo Realdo Colombo e, decerto, tinha naquela manhã de Inverno
do ano 1558 motivos muito bons para não comparecer ao encontro habitual que o
reunia todos os dias, antes da missa, com o seu Leonardino. Encerrado entre as
quatro paredes do claustro na Universidade de Pádua, Mateo Colombo escrevia. Se
me assiste o direito de dar nome às coisas por mim descobertas, chamarei isso
de Amor ou Prazer de Vênus, anotou Mateo Colombo, e dessa maneira concluiu o
arrazoado que estivera redigindo durante a noite inteira. No mesmo instante em
que fechou o grosso caderno de capas de pele de cordeiro, escutou as badaladas
que chamavam para a missa. Esfregou as pálpebras; tinha os olhos vermelhos e as
costas cansadas. Olhou para a pequena vigia que se elevava por cima da sua
escrivaninha e comprovou que a vela junto ao caderno ardia agora inutilmente.
Mais além, sobre as cúpulas da catedral, o sol começava a aquecer o ar e a evaporar
pouco a pouco o orvalho que reverdecia o relvado do jardim em que a Universidade
se erguia. Do outro lado do pátio chegava o perfume do incenso recém-aceso da
capela, que por momentos se alternava, segundo dispusesse o vento, com os
aromas hospitaleiros da fumegante chaminé da cozinha. E à medida que o sol se
levantava por sobre as telhas da arcada, na mesma proporção ia crescendo o
morno alvoroço que chegava da Piazza dei
Frutti. Os gritos dos lojistas e o pregão dos vendedores ambulantes, os balidos
das ovelhas oferecidas por dois ducados, como vociferavam as camponesas que
desciam para a cidade, contrastavam com o monástico silêncio imposto pelo toque
do sino a convocar para a missa.
Ainda
sonolentos, esfregando as mãos para atenuar o frio e soltando vapor branco pela
boca, os alunos saíam dos pavilhões para a arcada que circundava o pátio
central, convergindo todos numa fila que se iniciava na entrada do pequeno átrio
da capela. De pé junto ao pároco, Alessandro Legnano, o reitor da Universidade,
controlava com unção a ordem e impunha o silêncio por meio de olhares severos
dirigidos para aqui e acolá, ou, se fosse o caso, com um pigarro directamente
dedicado aos contraventores. Antes de ouvir a última badalada, Mateo Colombo
levantou-se e caminhou até a porta. Só quando girou a maçaneta e verificou que
a porta do claustro estava trancada por fora, lembrou que aqueles sinos não dobravam
mais para ele. O cansaço da noite em claro e, mais que isso, a força do hábito,
que toda a manhã o conduzia até à capela depois de uma breve visita à morgue,
fizeram-no esquecer que agora, por disposição dos Superiores Tribunais, estava
preso no seu próprio claustro. Sentiu remorsos pelo seu Leonardino. Talvez
devesse dar graças pela sorte que tinha; por certo seria muito pior ocupar uma
cela fria e asquerosa no presídio de Santo António. Talvez devesse dar graças
ao Tribunal e ao reitor pelo facto de não estar de pés e mãos acorrentados e
poder ver o morno sol de Inverno através da pequena vigia do claustro. Certamente,
as acusações que lhe eram imputadas mereciam o maior dos rigores: heresia, perjúrio,
blasfémia, bruxaria e satanismo. Por muito menos do que tais acusações os
punidos eram encarcerados. Agora mesmo, do seu claustro, podia ouvir os
passantes insultando, em meio a cusparadas, os réus exibidos nos pelourinhos da
praça. E não passavam de ladrões de quinquilharias». In Federico
Andahazi, O Anatomista, 1997, Editorial Presença, colecção Grandes Narrativas,
1998, ISBN 978-972-232-362-8.
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