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O Oriente Português: a perda de Ormuz e Malaca. O Brasil
O espírito de autonomia
«(…) Qual o juízo da história acerca dos sessenta anos da realeza espanhola
em Portugal? Por um ponto de vista plenamente negativo, como o fez a
historiografia liberal?, ou entendendo que a administração filipina deve ser
encarada em franjas temporais e sectores de actuação antes de se formular o
juízo crítico que a história requer? Não pode hoje manter-se a versão da decadência,
como se de um cativeiro se houvesse tratado. Esse conceito foi criado para
justificar a dinastia nova e avolumou-se na segunda metade do século XIX para impedir
a difusão do iberismo que certos espíritos tinham como salvador do Reino.
Muitos desejaram então contrapor à clara manhã de 1640 a longa noite de
sessenta anos, como se a liberdade da pátria tivesse de passar forçosamente
pela reconstrução de um país destruído. Que o sentimento nacional buscasse o
termo do domínio espanhol para devolver ao Reino os seus foros de nação livre,
é mais do que evidente. Assim se cumpria o fervor autonomista de que a cultura
do tempo oferece largos testemunhos. Porém, que a revolta eclodisse apenas para
salvar Portugal da decadência em que o lançara o governo dos Filipes, eis uma
afirmação que não resiste à crítica histórica.
Antipática no ponto de vista político, para muitos que guardavam as
lembranças da independência, e desfavorável no ponto de vista financeiro,
devido ao agravamento da tributação que se fez sentir com intensidade desde
1620, a realeza dos Filipes valorizou Portugal em muitos aspectos da vida
económica, social e cultural. Pelo menos até 1625, aumentou a população,
intensificou-se o progresso do ultramar, em especial do Brasil, aumentou o
movimento dos portos, estabeleceu-se apropriada legislação, ampliou-se a vida
regional, alastraram os focos de cultura. Foi com a ascensão de Filipe IV ao
trono e o governo despótico de Olivares, desejoso de integrar Portugal no corpo
hispânico, que veio ao de cima a impossível conciliação do interesse das duas
coroas ibéricas. A conquista de Ormuz pelos Ingleses e o domínio do Nordeste
brasileiro pela Holanda foram dois golpes decisivos na monarquia dualista. Deve
acrescentar-se que a Guerra dos Trinta Anos teve efeitos nefastos para
Portugal, na medida em que os inimigos da Espanha voltaram as suas armas contra
o nosso país e o ultramar. Tem, pois, de concluir-se que a política externa de Filipe
IV contribuiu para o desfasamento da união Ibérica e aumentou grandemente o
ódio dos Portugueses contra a realeza vizinha.
O juízo severo que atinge a administração dos Filipes visa rigorosamente
os últimos vinte anos desse governo, pois não se pode negar o desenvolvimento
até então obrado em quase todos os sectores da vida nacional. A verdade é que
as energias derramadas no corpo português se voltaram depois contra a Espanha,
o que nunca seria possível se a Nação estivesse reduzida ao estado de
decadência que muitos autores ainda referem. Conclua-se que, por mais
benefícios que Portugal houvesse recebido dessa administração, nada era
bastante para apagar a tradição de independência a que 1580 pusera um termo que
muitos portugueses não queriam aceitar. Daí o interesse que o sentimento
nacional representa para a compreensão histórica de 1640.
A Restauração de 1640
No sábado 1 de Dezembro de 1640, um grupo que se estima em quarenta
nobres dirigiu-se pelas nove horas ao Paço da Ribeira, onde venceu a
resistência da guarda real e reduziu ao silêncio a duquesa de Mântua,
governadora do Reino, que, invocando o princípio da obediência, lhes saíra ao caminho.
Não tardou que Miguel Vasconcelos, secretário de Estado e símbolo do ódio que
os Portugueses votavam a Castela, fosse descoberto num armário de papéis. Logo
morto a tiro, foi o seu corpo lançado pela varanda e sujeito às iras da população,
que, entretanto, acorrera em apoio aos conjurados. Do alto do balcão, o velho Miguel
Almeida proclamou a realeza do duque de Bragança. E este por intermédio de Pedro
Mendonça Furtado e de Jorge Melo, que haviam partido para Vila Viçosa, na manhã
do dia 3 teve notícia do sucesso.
Enquanto dom João não chegava a Lisboa, o que só aconteceu na noite do
dia 6, formou-se uma junta de governadores, com o arcebispo de Braga, o bispo de
Lisboa e o visconde Lourenço Lima, este em substituição do inquisidor-mor,
Francisco Castro, que não aceitou. Para não perturbar a vida pública, deu-se
ordem para os tribunais se manterem em funções, logo se providenciando em obter
dinheiro e armas para a defesa, nomeando-se fronteiros para o Minho, as Beiras
e o Alentejo. A Secretaria de Estado foi confiada a Francisco Lucena, que
haveria de sofrer as graves consequências da crise política de 1641. Desde o
dia 1 que a notícia da aclamação fora transmitida às várias câmaras, não
havendo uma só terra que nos fins do ano não tivesse procedido à aclamação do
novo monarca, na plena adesão nacional à dinastia nova.
Desta forma se abriu o processo da Restauração, que haveria de durar
vinte e oito anos de grandes sacrifícios humanos e materiais impostos ao Reino.
Apesar de duras condições de vida, que a nova tributação mais agravou, todo o
País colaborou nessa obra de salvação nacional, que assim foi considerada na
metrópole e no ultramar. Ao equilíbrio de governo de João IV se deveu a
estabilidade política que assegurou o primeiro triunfo do movimento. Com os
dons de patriotismo revelados por Luísa Gusmão, que assegurou a regência na
menoridade de Afonso IV, foi possível suster a primeira grande ameaça militar
na Batalha das Linhas de Elvas. Nos anos compreendidos entre 1663 e 1665, foi o
talento previdente do conde de Castelo Melhor que assegurou os grandes triunfos
do Ameixial, Figueira de Castelo Rodrigo e Montes Claros. O coroamento desse
longo sacrifício foi alcançado em 1668, quando o Tratado de Madrid
reconheceu de vez a Restauração Portuguesa». In Joaquim Veríssimo Serrão, O
Tempo dos Filipes em Portugal e no Brasil (1580-1668), Edições Colibri, Estudos
Históricos, Lisboa, 1994, ISBN 972-8047-58-4.
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