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A
Mulher que Amou Jesus
«(…) Tentando ser reverente, ela
enumerou, obediente, todos os dez mandamentos, com a cabeça baixa. Não terás
outros deuses diante de mim. Não farás para ti imagem de escultura. Não as
adorarás, nem prestarás culto. Asera! Mas não fui eu quem a fez, pensou Maria,
nem a reverencio nem a adoro. Além disso, não vou ficar com ela. Prometo! Não
tomarás o nome do Senhor, teu Deus, em vão. Não, não faço isso. Só uso o nome
de Javé nas minhas orações. Lembra-te do dia de sábado, para o santificar. Sempre
fazemos isso. Sempre cumprimos as regras. Mas então, lembrou-se de ter
concordado com a decisão de José de violar uma dessas regras. Será que isso me
faz culpada?, pensou. Honra teu pai e tua mãe. As aulas! As aulas de leitura
secretas! Sentiu-se profundamente atingida de culpa. Mas, por outro lado,
achava que nada havia de errado com as aulas, excepto pelo facto de ter de
mentir sobre elas. Não matarás. Suspirou, aliviada. Não adulterarás. Outro
suspiro de alívio. Não dirás testemunho contra o teu próximo. Ainda criança,
ela não poderia ser ouvida como testemunha legal, portanto estava a salvo desse
pecado. Não cobiçarás a casa do teu próximo. Ela cobiçava a casa de Quezia, mas
não pelo que existia na casa propriamente dita, e sim pelo ambiente criado
pelas pessoas que lá moravam. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem o seu
servo, nem a sua serva, nem o seu boi, nem o seu jumento, nem coisa alguma que
pertença ao teu próximo. Aí, ela pecara, e bastante. Havia tantas coisas que
cobiçava, que desejava ter para si. Não o conseguia evitar, quando olhava para
elas e eram tão atraentes...
Isso não é desculpa! A voz forte
de Javé parecia ressoar em seus ouvidos. Mas tem de haver mais do que isso,
pensou. Essas dez coisas são tão grandes.
E as coisas pequenas, do dia a dia? Assassinato não é uma coisa do dia a dia. Para
mim, o verdadeiro pecado é... É como fazer uma coisa que sabe que é errada,
pensou Maria. É errado eu ir às aulas de leitura, mesmo que eu ache certo
aprender a ler, se minha mãe e meu pai não querem que eu aprenda? E pensamentos
ruins? Os rabinos não falam disso, mas são eles que levam a todo o resto,
pensou. Há a raiva, querer que alguém fique doente, falar mal dos outros pelas
costas... Há tanta coisa que qualquer pessoa pode fazer sem transgredir a lei
oficial. As piores coisas que eu faço são os pensamentos ruins. Para cada coisa
ruim que faço, acho que tenho uns cem pensamentos ruins. O seu estômago
roncava. Estava morrendo de fome. E a cabeça doía. Isso é para nos lembrar que
dependemos de Deus para poder comer, disse a si própria, e para nos lembrar de
todas as vezes que esquecemos de agradecer pela comida. Mas doía por dentro e
ficava difícil concentrar-se. Sentou-se, obediente, no chão duro de seu quarto,
com a fome na cabeça, tentando compreender os mandamentos divinos e reflectindo
sobre seus pecados infantis.
O Dia do Perdão parecera interminável.
Na hora da refeição, simples, para quebrar o jejum, Natã disse, numa voz
mortificada: é por meio da misericórdia de Deus que gozamos da indulgência de
viver e de nos arrependermos. Mas, sinceramente, será que daqui a um ano
seremos melhores que hoje?, perguntou-se Maria. Ou iriam passar o ano inteiro
brigando para controlar os mesmos pecados e continuar pecando? Talvez as
pessoas não tentem o bastante, pensou. Vou tentar o máximo possível. E repetiu,
balbuciando para si mesma: vou tentar o máximo, é uma promessa. Sabia que Deus
a ouvia e exigiria que a cumprisse. E também tenho de livrar-me do ídolo. Tenho
de livrar-me de tudo que não satisfaça a Deus.
Ficou mais do que feliz por ir-se
deitar, ainda que praticamente não tivesse saído do quarto durante o dia
inteiro. Deitada, no escuro, parecia ser uma maneira de baixar uma cortina
sobre um dia que tinha sido ruim, ruim devido a lembranças desagradáveis e a
uma consciência pesada. Tentarei
fazer melhor, prometeu de novo, a si própria e a Deus. Pensou sobre
a cabra que deveria agora estar sem rumo, no meio do deserto, carregando consigo
o peso dos pecados de um povo. Levaria alguns dias até morrer, se é que iria
morrer. Talvez, por algum milagre, encontrasse água e comida. O mistério é que
ninguém iria saber.
O imperador romano morreu. Natã
entrou em casa a passos largos e pôs a cesta no chão. É por isso que há toda
essa balbúrdia lá fora. Durante a noite toda tinham-se ouvido sons distantes,
das montanhas, estrondos e barulhos que pareciam sugerir que alguma coisa de
errado ocorrera em algum lugar. Talvez fosse o barulho das tropas romanas deixando
os seus campos em direcção ao mar, ou chegando do norte, para se reforçarem, em
caso de confusão. O rei Herodes Antipas deu ordens para que todos nós observássemos
luto oficial, continuou. Não temos de fazer sacrifícios aos deuses romanos,
apenas ao nosso Deus, em nome do imperador falecido. Natã parecia aliviado e
sumiram as rugas da sua testa, mas tinha envelhecido bastante nesses sete anos
que o separavam daquele Dia do Perdão em que a sua filha Maria fizera a
promessa a Deus. Estava agora na casa dos 40 anos; as longas horas de um
trabalho exigente, nos armazéns de salgar peixe, faziam-se notar. O casamento
dos seus dois filhos o aliviara bastante das suas tarefas, mas ainda havia
muito trabalho a ser feito». In Margaret George, A Paixão de Maria
Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.
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