terça-feira, 2 de outubro de 2018

A Verdadeira História. Margaret George. «Nem a rapidez. Ora, deve estar na casa dos 50, disse Natã. Tornou-se uma velha rabugenta, se é que um homem pode ser chamado de velha rabugenta»

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A Mulher que Amou Jesus
«(…) Não vai tardar para que o imperador seja declarado um deus, como foi o primeiro, Júlio César, disse a mãe de Maria. Será que eles vão esperar por um período decente? Natã reclamou. Ora, Zebida, o que poderia ser um período decente? Sentou-se e pegou uma maçã fresca da cesta. Quanto tempo acha que leva para ser transformado num deus? Mordeu a maçã, barulhentamente. É só, zás-trás! Um instante? Ou é um processo lento, que nem massa de pão crescendo? Ambos caíram na risada. Imaginavam o corpo do velho imperador Augusto crescendo, majestosamente, as suas feições inchando e, finalmente, o corpo flutuando no seu leito de morte.
Quando conseguiram tomar fôlego de tanto rir, Zebida disse: ele foi imperador tanto tempo que a gente já nem se lembra mais. Que idade tem, tinha, ele? Natã pensou. Bem mais de 70, disse. É uma vida longa para qualquer um, mas particularmente longa em Roma. Fez uma pausa. E apesar de todos esses anos, de todas essas intrigas e de todos esses casamentos, o pobre Augusto não teve um filho para o suceder. Foi senhor do mundo, mas o último de sua família... Natã abanou a cabeça. E quem irá sucedê-lo?, perguntou Zebida, séria. Tibério, seu enteado. Só que ele nunca gostou de Tibério. Mas, no final, foi o que sobrou. Todos os outros, novos e velhos, que poderiam ser melhores imperadores, morreram: Agripa, o seu melhor amigo, os seus netos, os seus sobrinhos... Deu de ombros. É triste. Na verdade, é bem triste. E como é esse Tibério? Viraram-se ambos e viram Maria no limiar da porta. Há quanto tempo estaria ela ali? Dizem que é meio sinistro, disse o pai. E suspeito de complôs por toda a parte. Já vem esperando há muito tempo para ser imperador. Qual a idade dele? Maria não tinha perdido aquele jeito inquisitivo com a chegada da adolescência. Nem a rapidez. Ora, deve estar na casa dos 50, disse Natã. Tornou-se uma velha rabugenta, se é que um homem pode ser chamado de velha rabugenta.
Arrependeu-se assim que disse aquelas palavras. Maria já estava na idade de ser pedida em casamento, mas isso parecia surpreendentemente difícil. Não só ela não parecia interessada em casar-se, como a família não recebera muitas ofertas por ela, o que era estranho. Ela era bonita e inteligente, e uma aliança com a família poderia significar um bom futuro para qualquer jovem. Com a boca fechada, Maria fitou o seu pai. Por fim, disse: e como é que um romano pode ser uma velha rabugenta? O que o seu pai queria dizer é que ele é..., uma pessoa muito difícil, melindroso, efeminado... Como eu?, respondeu Maria. Ouvi dizer que participava de orgias obscenas, quando ele e os seus amigos se divertiam. Então, como poderia ser efeminado? Bom, se for possível ser ambas as coisas, então Tibério é ambas as coisas, disse o seu pai. Que reinado nos espera pela frente, previu. Mas talvez ele fique ocupado lá em Roma e nos deixe em paz. E onde é que ouviu essas coisas sobre a vida dele?, perguntou sua mãe. E o quê, precisamente, tinha ouvido? O que ela própria, Zebida, ouvira falar dele era revoltante, repugnante.
Ah, está na boca do povo, disse Maria, despreocupada. Ela e Quezia sempre falavam sobre ele, especialmente sobre as orgias. Faziam comparações entre os seus padrões de depravação e os dos homens da localidade: Pelo menos, não tem rolos com desenhos obscenos, como Tibério... Pelo menos não faz isso em público, como Tibério... Não distribui brindes especiais a quem vai às suas orgias, como Tibério... Não conseguiu evitar uma risada, quando se lembrou dos detalhes. O seu pai suspirou. O interesse de Maria por esse tipo de coisas só iria dificultar o seu casamento. Os homens a veriam com maus olhos, embora fosse atraente e elegante. Iriam preferir uma mulher feia, mas doce, pensou Natã. Olhou para a sua filha com olhos de comerciante, tentando avaliar a qualidade da mercadoria. Cabelos bonitos. Feições agradáveis, principalmente a boca e o sorriso. Um pouquinho alta demais, mas magra. Uma voz agradável. Falava grego e aramaico. Conhecia bem as escrituras. Era uma felicidade que as suas vantagens fossem visíveis e as suas imperfeições não se percebessem de imediato. Imperfeições: uma cabeça inquieta e inquisitiva. Uma tendência a desobedecer. Interesse por assuntos proibidos, tais como a luxúria de Tibério. Ataques de melancolia que não tentava disfarçar. Um certo gosto por coisas luxuosas e objectos preciosos. Um temperamento um pouco rápido demais e também uma certa teimosia. E guardava os seus segredos.
Imagino que não devêssemos estar rindo, disse Maria, por fim. Não numa hora em que o corpo de Augusto ainda jaz em algum lugar. Mas não é triste que eles, quero dizer, os romanos, realmente acreditam que ele se transformará num deus? E mudanças rápidas de assunto, acrescentou seu pai à lista das imperfeições de Maria. Fico pensando se realmente acreditam nisso, disse Zebida, ou se é uma mera convenção política. De certa maneira, parece até mais esquisito do que pessoas acreditarem que ídolos têm poder, quando todos sabem que são feitos de pedra e madeira. E marfim, pensou Maria com um sobressalto. Fazia muito tempo que não pensava no seu segredo do tempo de criança. Sim, é verdade, os adoradores de ídolos dizem que não são pedras que adoram, que a pedra representa outro poder, uma força invisível, disse Natã. Mas dizer que um homem se transforma em deus... Balançou a cabeça, em desaprovação». In Margaret George, A Paixão de Maria Madalena, 2002, Saída de Emergência, Edições Fio de Navalha, 2005, ISBN 972-883-911-1.

Cortesia de SdeEmergência/JDACT