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«(…) Aprecio os homens de ideias,
como eu próprio me considero. Quando, há anos, fiquei coxo ao cair do cavalo,
compreendi que dava importância demais ao corpo e à vida material. É na mente
que reside o verdadeiro poder, e espero que saiba usá-la no momento oportuno,
pois o Maligno está desferindo um golpe violento contra a cristandade. Agarrou
a borda da mesa, como se quisesse despedaçá-la. O Ocidente vem sendo vítima de
inúmeros flagelos: as hordas sarracenas, a heresia cátara e as epidemias. Que
sucederia se perdêssemos Branca de Castela, espada do Senhor e perseguidora dos
hereges? Quem cuidaria do reino da França? Não, por certo, o jovem delfim,
ainda muito inexperiente. O reino sucumbiria à truculência dos condes da Occitânia
e de seus protegidos, os cátaros, que não perderiam tempo e se espalhariam como
baratas pelo sul dos Alpes e além dos Pirenéus, nos reinos de Aragão e Castela.
Que remédio sugere para isso, reverendo padre? As mãos do dominicano se abriram
como as asas de uma pomba e depois se juntaram com firmeza. Partam sem demora
para Toulouse e peçam conselho ao bispo Folco. Ele, que por meio de um
exorcismo soube entrever a verdade dos factos, vai lhes apontar o bom caminho.
Entregarão ao bispo uma carta minha, que já confiei a messer Filippo, na qual
confirmo a boa-fé de vocês e seu vínculo com a corte castelhana. Além disso,
antes de chegarem lá, contarão com a escolta dos cavaleiros de Calatrava. Dez
deles partiram há dois dias e se juntarão a vocês perto de Toulouse. Já me
sinto mais tranquilo, disse Ignazio, na verdade inquieto com aquela última
revelação. Gente demais, pensou. Serão devidamente recompensados por esse serviço,
concluiu Gonzalez. Sem contar o grande benefício para suas almas. O paraíso está
garantido para os servidores de Cristo.
O mercador inclinou a cabeça,
fingindo-se profundamente honrado. Sua pequena encenação havia funcionado muito
bem. Provocando a ira do obtuso guerrejador, conseguira que o dominicano
interviesse e, assim, pudera avaliar suas ideias e sua influência na corte. E
as duas coisas não lhe pareceram nada desprezíveis. Gonzalez aguardou um gesto
de Fernando III para voltar a sentar-se. A ceia culminou com uma série de
sobremesas, e depois disso os serviçais trouxeram bacias para os convidados
lavarem as mãos. Galib encerrou a refeição bebendo um refresco de groselha e
informou o mercador de que ele e seus companheiros dormiriam num quarto abaixo
do torreão. Então, virando-se para Uberto, disse: espero que não esteja muito
cansado, rapaz. Vou acordá-lo antes do amanhecer. Dizendo isso, o magister
estampou um riso inquieto no rosto, que vagamente lembrava uma máscara de cera.
A noite caíra sobre o castelo de
Andújar. Quase todos os habitantes já dormiam profundamente, em meio a um silêncio
perturbado somente, de vez em quando, pelos passos dos guardas e pelos uivos de
animais distantes. O mercador de Toledo estava junto a Uberto e Willalme num
quarto ao pé do torreão. Os três permaneciam deitados em camas de palha, mas não
conseguiam dormir pensando no que os aguardava. De repente, ouviu-se uma batida
à porta. Uberto abriu um olho e perscrutou o escuro; aquele sinal era para ele.
Levantou-se, já inteiramente vestido, e, sem tocar nos companheiros estirados a
seu lado, caminhou em direcção à porta. Lá fora, Galib surgiu da sombra
empunhando uma lâmpada acesa. — Rápido, filho, antes que alguém me veja, sussurrou
ofegante. Uberto deixou-o entrar e percebeu imediatamente seu passo instável. Não
parecia tão ágil quanto estava algumas horas antes, mas exausto e cambaleante. Galib
iluminou as paredes do quarto, revelando uma simplicidade espartana limitada a
uma cadeira, um banco e três camas rústicas. O lume pousou finalmente sobre o
rosto sonolento de Ignazio. O mercador saudou-o. Magister, está tudo pronto? Naturalmente.
Os olhos do velho brilharam. Seu filho deve seguir-me até às cocheiras. Willalme
pôs-se em pé. Vou com vocês, é mais seguro. Não, objectou Galib. Daria muito na
vista. Os espiões de Gonzalez... Não conseguiu concluir o que dizia, pois caiu
como se estivesse tomado de vertigem. Você não me parece bem, magíster,
interveio Ignazio, inquieto; na penumbra, ele percebeu que o velho estava muito
vermelho e transpirava». In Marcello Simoni, A Biblioteca Perdida do
Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube do Autor, Lisboa,
2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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