segunda-feira, 5 de novembro de 2018

A Armada do Papa. Gordon Urquhart. «… os críticos dos movimentos a guardar silêncio, as tensões estão aumentando em várias áreas da Igreja e poderiam levar a cisões mais sérias, eventualmente até mesmo ao cisma»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) O ponto essencial é que eles têm a virtude fora de moda da devoção fanática à Santa Sé. Eles proclamaram e aplaudiram freneticamente seu apoio em todas as apresentações públicas de João Paulo em todos os lugares do mundo; eles atenderam à convocação de todos os apelos do Papa e defenderam publicamente até as suas posições mais impopulares. Não levou muito tempo para o Papa descobrir que ali estava a força-tarefa de que necessitava. Disciplinados e militantes, os movimentos podiam perfeitamente ser a Armada do Papa. Naturalmente, tratava-se de uma via de mão dupla: os movimentos tinham muito a ganhar com este patrocínio de alto nível. Além disso, tanto eles quanto o Papa tinham em comum um mesmo problema: os bispos locais. CL e NC, em especial, tinham experimentado muitos conflitos em dioceses de todos os cantos do mundo. O Concílio havia reavivado o papel das igrejas locais e, em consequência, a autoridade dos bispos. O conceito de colegiado, ou seja, a autoridade dos bispos como corpo unido com o Papa, tinha sido enfatizado como uma espécie de contrapeso ao conceito de infalibilidade. João Paulo não formulava o problema exactamente nestes termos. Ele gastou toda a década de 1980 procurando manter sob o seu controle os bispos e os seus conselhos nacionais, as famosas Conferências Nacionais de Bispos. A centralização era um conceito sobre o qual os movimentos sabiam muita coisa. Nas suas próprias estruturas, eles nunca deram espaço para a democracia e sempre procuraram defender com paixão a ideia de que não havia cabimento para democracia dentro da Igreja. Este apoio do Papa transformou-se no cartão de visitas dos movimentos às dioceses locais, um cartão de visitas especialmente útil em dioceses onde havia bispos hostis. Em compensação, eles pregavam o evangelho do ultramontanismo.
O arquitecto da restauração no Vaticano era o cardeal alemão Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina e a Fé, mais conhecida como Santo Ofício, ou Inquisição (maldita). Teólogo no Concilio, ele acabou passando sorrateiramente para a direita nos anos 70, e atingindo o auge de sua posição de poder nos anos 80, perseguindo os seus antigos colegas, entre os quais alguns dos mais ilustres teólogos católicos do mundo. Ratzinger acabou deixando a sua assinatura em alguns dos mais duros pronunciamentos disciplinares do Vaticano. As poderosas Conferências Nacionais dos Bispos passaram a ser o alvo preferido dos seus ataques, na tentativa de trazer de volta a autoridade suprema do papado. Não é, pois, de estranhar que ele, o Papa, se tenha transformado no ardoroso defensor dos movimentos, que são, provavelmente, as únicas organizações de algum peso na Igreja que têm todas as qualidades que ele admira. João Paulo é absolutamente franco quando defende a autenticidade e a liberdade de acção dos movimentos: a intensa vida de fé que se encontra nestes movimentos não implica que eles sejam introspectivos ou que simplesmente se fechem numa catolicidade plena e integral (...). A nossa tarefa, tanto como encarregado de um ministério na Igreja quanto na qualidade de teólogo, é a de manter as portas abertas para eles e lhes preparar um espaço.
Não é nenhuma surpresa saber que o entusiasmo de Ratzinger, como, aliás, do próprio Papa, por estes movimentos não conta com a participação de muita gente dentro da Igreja, inclusive de um bom número de bispos e cardeais influentes. O cardeal Martini, de Milão, jesuíta e professor de Sagrada Escritura, é o adversário mais conhecido na Europa: na Igreja da América do Sul também há figuras de proa, como os cardeais Arns e Lorscheider, do Brasil, que têm tomado posição contra os movimentos, criticados por causa de suas posições fundamentalistas e pela sua presença como igrejas paralelas dentro das dioceses locais. A controvérsia que eles desencadearam já provocou divisões no seio das paróquias, entre padres e bispos, entre bispos e o Papa e até mesmo no próprio Vaticano, ou seja, no próprio coração da igreja institucional. Embora o apoio do Papa tenha forçado os críticos dos movimentos a guardar silêncio, as tensões estão aumentando em várias áreas da Igreja e poderiam levar a cisões mais sérias, eventualmente até mesmo ao cisma.
Não obstante, até mesmo os adversários são obrigados a reconhecer o zelo e a eficácia destas novas estruturas. O cardeal Danneels, da Bélgica, um moderado, assinalou que é um facto que a maior parte das conversões de nosso tempo acontecem nesses movimentos, enquanto as nossas estruturas clássicas parecem ficar relegadas à função de proceder às revisões de rotina e garantir o funcionamento normal da máquina. Será que o verdadeiro trabalho missionário na Europa não está sendo feito pelos movimentos e grupos (pequenos ou grandes) que não pertencem às estruturas profundas do povo de Deus, ou, em outras palavras, que não pertencem às dioceses e paróquias?» In Gordon Urquhart, A Armada do Papa, tradução de Irineu Guimarães, Editora Record, 2002, ISBN 978-850-106-222-2.
                                                                                                                
Cortesia de ERecord/JDACT