O
peso e a leveza
«(…) Tinham
exactamente a mesma maneira de rir que as mulheres vivas que dantes se
divertiam a dizer-lhe que era perfeitamente normal que um dia também tivesse os
dentes estragados, doenças nos ovários e rugas, visto que elas também tinham os
dentes estragados, doenças nos ovários e rugas. E agora, com o mesmo riso,
explicavam-lhe que estava morta e que isso era a ordem natural das coisas! De
repente, teve vontade de fazer xixi. Gritou: mas se eu tenho vontade de fazer
xixi! Isso é a prova de que não estou morta! Desataram outra vez a rir às gargalhadas:
ter vontade de fazer xixi é normal! Ainda vais sentir tudo durante muito tempo.
É como as pessoas a quem amputaram uma mão e que ainda a sentem muito tempo
depois. Nós, nós já não temos urina mas continuamos a ter vontade de mijar. Deitada
na cama, Tereza chegava-se para junto de Tomás, dizendo: e tratavam-me todas
por tu, como se me conhecessem desde sempre, como se fossem minhas amigas, e eu
tinha medo de ser obrigada a ficar com elas para sempre! Em todas as línguas
derivadas do latim, a palavra compaixão forma-se com o prefixo com e a raiz passio
que, na sua origem, significa sofrimento. Noutras línguas, como, por exemplo,
em checo, em polaco, em alemão, em sueco, a palavra traduz-se por um substantivo
formado por um prefixo equivalente seguido da palavra sentimento (em checo:
sou-cir; em polaco: wspol-czucie; em alemão: Mit-gefühl; em sueco: med-känsla).
Nas línguas derivadas do latim, a palavra compaixão significa que ninguém pode
ficar indiferente ao sofrimento de outrem; ou, de outra maneira: sente-se
sempre simpatia por quem sofre. Outra palavra que tem mais ou menos o mesmo
sentido, e que é piedade (em inglês pitv, em italiano pierà, etc.), chega até a
sugerir uma espécie de indulgência para com o ser que sofre. Ter piedade de uma
mulher é sermos mais favorecidos do que ela, é inclinarmo-nos, baixarmo-nos até
ela. Por isso é que a palavra compaixão inspira geralmente uma certa
desconfiança; designa um sentimento considerado como de segunda ordem e que não
tem grande coisa a ver com o amor. Amar alguém por compaixão é de facto não
amar essa pessoa. Nas línguas em que a palavra compaixão não se forma com a
raiz passio = sofrimento mas com o substantivo sentimento, a palavra é empregue
mais ou menos no mesmo sentido, mas dificilmente se pode dizer que designa um
sentimento mau ou medíocre. A força secreta da sua etimologia banha a palavra
de uma outra luz e dá-lhe um sentido mais lato: ter compaixão (co-sentimento) é
poder viver com o outro não só a sua infelicidade mas sentir também todos os
seus outros sentimentos: alegria, angústia, felicidade, dor. Esta compaixão (no
sentido de soucit, wspolrzurie, Mitgefühl, medkänsla) designa, portanto, a mais
alta capacidade de imaginação afectiva, ou seja, a arte da telepatia das
emoções. Na hierarquia dos sentimentos, é o sentimento supremo.
Sonhando
que estava a enfiar agulhas por baixo das unhas, Tereza traía-se a si própria
porque revelava a Tomás que mexia às escondidas nas suas gavetas. Se fosse
outra mulher, nunca mais lhe dirigiria palavra. Consciente disso, Tereza
dissera-lhe: põe-me na rua! Ora, ele não só não a tinha posto na rua como lhe
pegara na mão e lhe beijara a ponta dos dedos, já que, nesse momento, sentia a
mesma dor que ela por baixo das unhas, como se os dedos de Tereza estivessem
directamente ligados ao seu cérebro. Aquele que não possui o dom diabólico da
compaixão (co-sentimento) não pode senão condenar friamente o comportamento de
Tereza, porque a vida privada do outro é sagrada e não se devem abrir as
gavetas onde ele guarda a sua correspondência pessoal. Mas como a compaixão se
tornara o destino (ou a maldição) de Tomás, parecia-lhe que fora ele que se
ajoelhara em frente da gaveta da secretária e ficara hipnotizado pelas frases
escritas pela mão de Sabina. Compreendia Tereza e não só era incapaz de
querer-lhe mal como o seu gesto o fazia amá-la ainda mais.
Os
gestos de Tereza eram cada vez mais bruscos e incoerentes. Há já dois anos que
descobrira as
infidelidades de Tomás
e tudo ia de mal a pior. Era um caso insolúvel. Mas como? Tomás não podia acabar de vez com as suas
amizades eróticas? Não, isso seria o seu fim. Não tinha força suficiente para
refrear o seu apetite por outras mulheres. E depois, parecia-lhe uma coisa
supérflua. Ninguém melhor do que ele sabia que essas aventuras não punham
Tereza minimamente em questão. Privar-se delas, porquê? Era uma eventualidade
que lhe parecia tão absurda como renunciar a ir ao futebol». In Milan Kundera, A Insustentável
Leveza do Ser, 1983, Publicações dom Quixote, 2013, ISBN 978-972-200-002-4.
Cortesia
PdonQuixote/JDACT