sábado, 3 de novembro de 2018

Nas Asas do Tempo. Diana Gabaldon. «Os homens tendem a ser muito pitorescos quando se está tirando estilhaços do corpo deles. Com muito tacto, o sr. Bainbridge tentou desviar a conversa para o campo neutro…»

jdact

«(…) Revirei os olhos, pressentindo uma nova explosão de conhecimento, mas a sra. Baird sorriu cordialmente e encorajou-o, dizendo que era verdade, ela havia estado no norte e visto a pedra Dois Irmãos e isso era escandinavo, não era? Os escandinavos visitaram essa costa centenas de vezes entre 500 e 1300 d.C., aproximadamente, Frank disse, olhando sonhadoramente para o horizonte, vendo barcos normandos na nuvem varrida pelo vento. Vikings. E trouxeram muitos de seus mitos com eles. É um país bom para mitos. As coisas parecem criar raízes aqui. Nisso eu podia acreditar. O crepúsculo se aproximava, assim como uma tempestade. Na estranha luz sob as nuvens, até as casas totalmente modernas ao longo da rua pareciam tão antigas e sinistras quanto a desgastada pedra do povo picto que ficava a uns trinta metros de distância, guardando a encruzilhada que marcava há mil anos. Parecia uma boa noite para ficar em casa com as persianas fechadas. Ao invés de permanecer confortavelmente sentada na sala de visitas da sra. Baird, vendo imagens estereoscópicas de Perth Harbor, entretanto, Frank preferiu comparecer ao seu compromisso com o sr. Bainbridge, um tabelião com interesse em registros históricos locais, para tomar um xerez. Lembrando-me do encontro anterior que tivera com o sr. Bainbridge, resolvi permanecer em casa com Perth Harbor. Procure voltar antes da tempestade, disse a Frank, dando- lhe um beijo de despedida. E dê lembranças minhas ao sr. Bainbridge. Humm, sim. Sim, claro. Cuidadosamente evitando os meus olhos, Frank encolheu os ombros dentro do seu sobretudo e partiu, pegando num guarda-chuva do suporte junto à porta.
Fechei a porta quando ele saiu, mas deixei-a destrancada para que ele pudesse entrar ao voltar. Dirigi-me languidamente de volta à sala de visitas, reflectindo que Frank iria sem dúvida fingir que não tinha mulher. Uma farsa à qual o sr. Bainbridge se iria unir alegremente. Não que eu, particularmente, pudesse culpá- lo. No começo, tudo correra muito bem na nossa visita à casa do sr. Bainbridge na tarde do dia anterior. Eu me mostrara recatada, bem-educada, inteligente, mas modesta, elegante e discretamente vestida, tudo que a mulher perfeita do professor universitário deveria ser. Até o chá ser servido. Agora, virei a minha mão direita, examinando, com tristeza, a grande bolha que se estendia pela base dos quatro dedos. Afinal, não era culpa minha que o sr. Bainbridge, um viúvo, se contentasse com um bule barato de metal, ao invés de um bule adequado de louça. Nem que o tabelião, procurando ser gentil, tivesse me pedido para servir o chá. Nem que a luva da panela que ele me deu apresentasse uma parte gasta que permitiu que o cabo em brasa do bule entrasse em contacto directo com a minha mão quando o segurei.
Não, concluí. Deixar cair o bule foi uma reacção perfeitamente normal. Deixá-lo cair no colo do sr. Bainbridge foi apenas um infeliz acidente; tinha que deixá-lo cair em algum lugar. Foi a minha exclamação Pu… que pariu!, em voz mais alta do que o berro de dor do sr. Bainbridge que fez Frank olhar-me enfurecido por cima dos pãezinhos. Quando se recuperou do choque, o sr. Bainbridge mostrou-se muito gentil, examinando a minha mão e ignorando as tentativas de Frank de se desculpar pelo meu linguajar, alegando que eu servira num hospital de campanha por quase dois anos. Receio que a minha mulher acabou usando algum calão, há, expressões mais pitorescas dos ianques e de outros, Frank sugeriu com um sorriso nervoso. É verdade, disse, cerrando os dentes enquanto envolvia a minha mão com um guardanapo embebido em água. Os homens tendem a ser muito pitorescos quando se está tirando estilhaços do corpo deles. Com muito tacto, o sr. Bainbridge tentou desviar a conversa para o campo neutro da história dizendo que sempre se interessara pelas variações do que fora considerado discurso profano através dos tempos. Havia Gorblimey, por exemplo, uma corrupção recente da imprecação God blind me. Sim, é claro, disse Frank, aceitando de bom grado o desvio da conversa. Sem açúcar, obrigado, Claire. E quanto a Gadzooks? A parte Gad é perfeitamente clara, naturalmente vem de God, mas zook...
Bem, sabe, interpôs o tabelião, às vezes eu acho que possa ser uma corrupção de uma antiga palavra escocesa, na verdade, yeuk. Significa tentação, ânsia, desejo. Faria sentido, não? Frank concordou, balançando a cabeça e deixando o seu pouco erudito topete cair na frente da testa. Empurrou-o para trás automaticamente. Interessante. Toda a evolução do sacrilégio. Sim, e continua a acontecer, disse, pegando cuidadosamente num cubo de açúcar com a pinça. É mesmo?, disse o sr. Bainbridge. A senhora encontrou algumas variações importantes durante a sua experiência na guerra? Ah, sim, disse. A minha favorita aprendi-a com um ianque. Um homem chamado Williamson, de Nova York, eu acho. Ele a dizia todas as vezes  que mudava o curativo. E qual era? Jesus H. Roosevelt Cristo, disse, deixando o cubo de açúcar cair cuidadosamente no café de Frank». In Diana Gabaldon, Nas Asas do Tempo, Casa das Letras, Leya, 2010, 2016, ISBN 978-972-461-974-3.

Cortesia da CdasLetras/JDACT