As
Crianças de Cárquere. 1146
Coimbra.
Páscoa de 1146
«(…) Mulheres..., riu-se o rei, fazendo
uma careta de desdém. Nunca se pode confiar nelas! Ajustadas estas contas de
alcova, Afonso Henriques quis motivar o almocreve. Se ele convencesse Chamoa,
oferecia-lhe uma propriedade e um novo estatuto. Sereis Mem Ramires, cavaleiro de
Almourol, um castelo que podereis recuperar! Era uma doação irrecusável. Anos antes,
Mem pensara em tornar-se cavaleiro, mas a sua turbulenta vida não o permitira. Agora,
para sê-lo, bastava-lhe persuadir Chamoa. Com vinho e cantiga acalma-se qualquer
amiga!, exclamou o eufórico almocreve, de forma surpreendente, pois costumava
guardar os ditos espirituosos só para si. Assim, no Domingo de Páscoa, lá estava
Chamoa na Sé, numa fila secundária para ninguém dar por ela, como se tal fosse
possível. A seu lado, Mem orgulhou-se da amiga, a mais bela da igreja, envolta
numa dalmática púrpura lindíssima, com os cabelos longos a caírem-lhe pelas costas
e um decote ousado, que obrigava os homens a mirá-la e o bispo Bernardo a franzir
a testa, em desaprovação extática.
Peitos gostosos, incomodam os religiosos.
Apesar de apetitosa por fora, Chamoa
estava destroçava por dentro, obrigada ao castigo extremo de assistir àquele matrimónio,
que a derrotava em definitivo como candidata a rainha de Portugal. E ainda mais
desagradada ficou quando, durante a ceia, que decorreu no pátio da Sé, debaixo da
enorme tenda ali montada para o efeito, os bobos da corte a escolheram como alvo
principal de gozação.
Piadas maldosas, mulheres
ardilosas.
No final da festa, Mem soube que fora
a rainha Mafalda, em conluio com Gonçalo Sousa, a industriar os cómicos para uma
representação teatral infame, onde uma mulher meio enlouquecida dormia com vários
homens e também com uma moura. Depois de tanta desbragada folgança, da barriga
dela saíam seis rapazes aos pulos, enquanto um indivíduo alto e forte, vagamente
semelhante a Afonso Henriques, coçava uns cor… que tinha pousados na testa, e outro,
parecido com Afonso VII, se masturbava sentado num trono.
Filho a proteger, mãe a sofrer.
Era evidente em quem se inspirava
tamanha boçalidade, mas Mem valorizou o facto de Chamoa se ter humilhado calada,
em nome do futuro de Pêro Pais. Terminada a festa, o almocreve acompanhou-a a
casa, seguido pelo filho. A estaferma da francesa vai fazer-me a vida negra!, barafustou
Chamoa, sofrendo com a chalaça. Mem aconselhou-a a ser resiliente e a esquecer as
parvoíces dos bobos, pagos para espalharem enormidades. A serenar aos poucos,
Chamoa disse ao filho que ele podia ir-se. E vós, ficais aqui?, perguntou Pêro Pais,
olhando Mem de soslaio. Calmo e sério, o almocreve colocou-lhe a mão no ombro.
Talvez devêssemos trocar de casa. O filho de Chamoa atrapalhou-se. Nunca lhe passara
pela cabeça que Mem sabia das suas ternuras com as três moçárabes. Porém, logo se
sentiu aliviado, pois o almocreve não o hostilizara. Pelos vistos, não levava a
mal. Assim seja, aceitou Pêro Pais, que depois se virou para a mãe e a
relembrou de algo essencial. Tendes de falar com Egas Moniz antes que ele morra!
Com um suspiro, Chamoa prometeu ao filho uma ida a Lamego, na minha companhia.
Satisfeito, Pêro despediu-se e ela caiu por fim nos braços de Mem.
Menina abalada, sempre muito dada.
Um momento ímpar, o mais grave da
minha vida, aproximava-se. Meu pai morria, era imperioso falar com ele. Egas Moniz
tinha de nos contar a verdade! Ele estivera em Astorga com Martinho de Soure, os
dois haviam assistido à morte do conde Henrique, eram os únicos com quem este
falara antes de falecer. Por mais que o admirasse e considerasse íntegro,
tornava-se por demais evidente que meu pai conhecia segredos muito antigos e tinha
de os revelar antes do seu encontro com Deus. Mais que não fosse, para me acalmar.
Fora o meu melhor amigo quem vencera a batalha de São Mamede; quem ousara
declarar-se independente de Afonso VII depois de o vencer em Cerneja; fora ele a
ser reconhecido rei em Zamora e quem derrotara cinco emires mouros, em Ourique!
Como seria possível, num golpe absurdo do destino, alguém declará-lo um reles
usurpador?
Esta ideia arrepiava-me, mas pior
ainda era a possibilidade de carregar com o peso do nome dele. Não me sentia preparado
para herdar o seu cargo e as suas responsabilidades! Não o desejava, pois não tinha
qualquer vocação para rei! E nem me queria sequer zangar com ele, era o meu melhor
amigo, não o ia trair ou decepcionar! Por tudo isto, que era já tanto, só as palavras
de meu pai, sempre sereno e seguro, podiam fechar a ferida aberta no meu peito».
In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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