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As
Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Egas Moniz morreu no terceiro
dia do mês de Agosto desse ano e no seu enterro, em Lamego, além do meu melhor amigo
e da rainha Mafalda da Sabóia, compareceram os principais notáveis da corte
portucalense: Peres Cativo, Gonçalo Sousa, João Peculiar, os bispos de Coimbra e
do Porto, o prior Teotónio, Gonçalo Mendes da Maia, o Lidador, e muitos outros nobres
portucalenses. Durante as solenes exéquias, causou-me curiosidade ver, perto do
túmulo, um monge do Mosteiro de Cárquere. Quando questionei a viúva de meu pai,
Teresa Celanova, esta disse-me que o indivíduo era uma presença habitual em Lamego,
sendo o confessor de meu pai, a quem dera a extrema-unção. Observei-o com atenção,
sabendo já que se chamava Leopoldo. Com cerca de quarenta anos, apresentava um andar
curvado e um aspecto assaz frágil. Não tinha idade para conhecer o conde Henrique,
mas, por ser tão próximo de Egas Moniz e monge em Cárquere, reacendeu as minhas
dúvidas, que meu pai tentara extinguir dois dias antes.
Cientes de que a saúde de Egas Moniz
estava imparavelmente degradada, Chamoa e eu tínhamos corrido a Lamego. Quando nos
aproximámos da cama de meu pai, notei que, mesmo moribundo, se desagradava com a
presença da minha cunhada. Que faz ela aqui?, gemeu Egas Moniz. Desculpei-me
por ter de sujeitá-lo a uma série de perguntas e, com amável serenidade, expliquei-lhe
a dúvida que Afonso VII lançara sobre a identidade de Afonso Henriques. Diz que
não é o filho do conde Henrique e de dona Teresa. Meu pai encolheu-se, siderado
com o que ouvia. Lourenço Viegas, que falsidade! Sem esmorecer, insisti. A criança
nascera aleijadinha, tolhida de pernas, mas o meu melhor amigo era agora um gigante.
O rei dos Cinco Reinos não acreditava em tal transformação e suspeitava de que o
débil menino tivesse sido trocado por um saudável e viçoso. E que sabe ele disso,
acaso vivia por cá?, indignou-se meu pai. Apesar das dificuldades em respirar,
logo ali nos garantiu que essa infame patranha fora inventada pela mãe do imperador,
dona Urraca, cuja malícia era infinita.
Sempre nos quis prejudicar, espalhou
esse disparate para tramar dona Teresa! A custo, interrompendo cada frase para
ganhar forças, Egas Moniz contou-nos que, no próprio dia da morte do conde Henrique,
em Astorga, a rainha de Leão insinuara que o pequeno Afonso Henriques não era o
filho da irmã e do conde. Só que ninguém dera qualquer importância às suas maldosas
aleivosias. Dona Urraca envenenou o conde Henrique, matou-o com peçonha! E
mesmo depois disso continuava a denegri-lo! Era uma criatura vil!, barafustou
meu pai. E o filho dela sai à mãe! Depois de uma pequena pausa, que lhe permitiu
acalmar a respiração, perguntei-lhe quem mais estava em Astorga e ele nomeou Martinho
de Soure. Mas o último confessor do conde nunca quebrara o silêncio a que estava
obrigado pelas leis da Igreja. E o meu primeiro marido?, perguntou Chamoa. Egas
Moniz olhou-a de soslaio, garantindo que Paio Soares só chegara a Astorga já com
o conde morto. Além disso, meu pai nunca havia falado com ele sobre a vil intriga
lançada por Dona Urraca.
Não estava mais ninguém em Astorga?,
insistiu a minha cunhada. Como meu pai baixou os olhos, cansado de tanto falar,
Teresa Celanova pediu-nos que terminássemos, pois ele precisava de repousar. Contudo,
não me afastei. Urgia confrontá-lo com os meus terrores íntimos, mas foi de coração
apertado que declarei: o imperador Afonso VII suspeita de que haveis sido vós a
trocar as crianças. Não acredita no milagre de Cárquere! Magoado, Egas Moniz olhou-me:
Lourenço Viegas, achais-me capaz de tal fraude?» In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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