quarta-feira, 28 de novembro de 2018

Ensaios sobre História de Portugal. Questionar a História. António Borges Coelho. «O pensamento não nasce da mente divina nem as ideias preexistem à sua criação ou assunção como os arquétipos platónicos»

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Para a análise do conteúdo do vocábulo história
História real e História teoria
 (…) Já Espinosa e Leibniz, demarcando-se de Descartes, tinham caracterizado em profundidade a consciência, designadamente a consciência científica. Sobre o entendimento escrevia Espinosa: envolve a certeza, isto é, sabe que as coisas são tais formalmente como se contêm em si próprio objectivamente. Ou ainda: as ideias que formamos claras e distintas parecem derivar da simples necessidade da nossa natureza de tal maneira que parecem depender absolutamente só do nosso poder. Leibniz ataca abertamente o cogito (a consciência) cartesiano: há tantas verdades de facto primeiras como há percepções imediatas ou se se pode dizer consciências. Não tenho apenas consciência do meu eu pensante mas dos meus pensamentos e nada há mais verdadeiro e certo que não só penso como é verdadeiro e certo que penso tal e tal coisa. Todas as verdades de facto primeiras podem ser reduzidas a esta: eu penso e coisas diferentes são pensadas por mim. Donde se segue que não só penso como sou afectado de diferentes maneiras.
A consciência é consciência do eu e do ele, é a consciência do outro e dos outros, e sem os outros não se chegaria à assunção do eu. Também não é a contemplação das ideias que nos fornece a matéria. Os sentidos fornecem-nos a matéria-prima para as reflexões e nós nem mesmo pensaríamos no pensamento se não pensássemos em qualquer outra coisa, isto é, nas particularidades que os sentidos fornecem. O processo contínuo da consciência é assunção do dentro e do fora, constrói representações que impõe como reais, como adequação do dentro ao do fora. A consciência exprime, responde adequadamente ao que está dentro e fora, porque não só as percepções são absolutamente certas como o princípio da certeza lógica e da certeza física assenta no axioma toda a percepção do meu pensamento presente é verdadeira.
À querela retórica dos cépticos antigos e modernos, respondeu Bento Espinosa: com eles não vale a pena falar de ciências porque, no que respeita ao uso da vida e da sociedade, a necessidade obriga-os a admitir que existem, e a procurarem os seus interesses, e a afirmarem e a negarem muitas coisas sob juramento. Se se lhes demonstra alguma coisa, não sabem se a argumentação prova ou é deficiente. Se negam, concedem ou opõem, não sabem que negam, concedem ou opõem, portanto têm de ser considerados como autómatos que carecem totalmente de espírito. Certamente, os sentidos induzem em erro. Por outro lado, formulamos ideias fictícias, ideias falsas, ideias duvidosas. Mas o verdadeiro método para fugirmos do erro, ensina ainda Espinosa, consiste em seguir a ordem lógica, em estabelecer a ideia da ideia, seguindo rigorosamente as regras da definição, desconfiando da imaginação e das palavras que são parte da imaginação, mas sobretudo temos de deduzir sempre todas as nossas ideias de coisas físicas ou de seres reais, avançando, tanto quanto possível, segundo a série das causas de um ser real a outro ser real; e de maneira tal que não passemos pelas coisas abstractas e universais; ou que não se deduza delas algo real. E acrescentava: quando tratamos da investigação das coisas, não nos será permitido concluir uma coisa de noções abstractas e devemos precaver-nos com grande esforço em não confundir as coisas que estão apenas no entendimento com as que estão na realidade.
O pensamento não nasce da mente divina nem as ideias preexistem à sua criação ou assunção como os arquétipos platónicos. Do ponto de vista da existência individual que é a de cada um de nós, preexistem-nos num sem-número de conceitos, todo o arsenal teórico carreado pelas diferentes gerações e conservado nas mentes, nos livros, nos sinais. Daí a ilusão da existência de um mundo à parte, do mundo platónico das ideias. O entendimento, que produz o tal concreto pensado de que falava Marx, não navega solitário, está continuamente dependente porque sem a escrita e os sinais seria muito difícil estabelecer as ciências ou seja estabelecer as cadeias ininterruptas pelas quais, através da demonstração, podemos abarcar o real. Demonstrar é, estabelecer uma longa cadeia de consequências e envolve a lembrança de uma consequência passada que já não é considerada distintamente quando se atinge a conclusão. Se é a evidência e o princípio de identidade que nos garantem o encadeamento ininterrupto das premissas, é o elemento material e espiritual dos símbolos que nos permite saltar de premissa em premissa e, dado que nos conserva o seu registo, visualizar o seu encadeamento.
Além do recurso contínuo aos símbolos, o pensamento depende do seu suporte material, o cérebro, o corpo humano, por sua vez inteiramente dependentes do meio físico e social, do clima, da água, do alimento, da procriação, da educação. Ver, é um acto quotidiano que resulta, antes de mais, da especialização adquirida pela espécie e da especialização adquirida pelo indivíduo através da especialização progressiva de determinados sectores do cérebro. Este acto ocorre, vimo-lo no capítulo anterior, em relações históricas, sociais, ideológicas e teóricas pré-determinadas, as quais balizam imediatamente o campo do visível. O educador é educado». In António Borges Coelho, Questionar a História, Ensaios sobre História de Portugal, colecção Universitária, Editorial Caminho, Lisboa, 1983.
                      
Cortesia de Caminho/JDACT