Os
Reféns. 1147
Silves, Agosto de 1147
«Quando os exércitos de Ibn Wasir
entraram finalmente em Silves, Mem temeu um destino trágico para a princesa Zaida
e obrigou-se a uma manobra perigosa. Arriscaria a vida por ela. Era essencial, pois
Wasir sempre a odiara desde a primeira vez que haviam chegado a Mértola, há oito
anos.
Homem com rancor, vinga-se com ardor.
Já apoiado pelos almóadas africanos,
Ibn Wasir controlava agora uma enorme taifa, um vasto reino muçulmano, cuja sede
era em Badajoz e que incluía também Alcácer, Évora, Beja, Cáceres e a recentemente
reconquistada Mértola. E Silves estava por fim a cair-lhe nas mãos. Ibn Qasi, o
fanático sufi, perdera a gente do Al-Gharb. Chegado de Lisboa já com Silves
cercada, Mem escondera-se nos arrabaldes, sem conseguir falar com Zaida, que
nunca saía do palácio. Desprovido de um plano, esperou a resolução final da luta.
O momento certo para avançar surgiu quando ruiu parte da muralha, no sueste da povoação.
Centenas de soldados de Ibn Wasir entraram aos gritos e as tropas de Qasi, em vez
de recuarem para a alcáçova, tentaram pelejar nas ruelas, cometendo um erro clamoroso,
pois depressa foram dizimadas pelas hordas numerosas do antigo alcaide de
Mértola.
Emir sem talento, final sangrento.
Rápido, Mem correu para a zona norte
da povoação, quase deserta e isenta de escaramuças. Laçou a corda num adarve e içou-se
até ao topo da muralha exterior, descendo do outro lado e avançando pelas ruas
da almedina encostado às paredes, como se fosse um assustado habitante, magro devido
à penúria alimentar gerada pelo cerco.
Povo esfomeado, mais facilmente é
vergado.
História repetida, menos
apetecida. As gentes de Silves rendiam-se sem drama e o habilidoso emir de Badajoz
não promovia carnificinas inúteis. Os soldados ignoravam o povo, o que ajudou Mem
a chegar perto do palácio. Já ali estivera antes e recordou-se da ribeira que passava
por debaixo da muralha interior. De cabeça baixa, com o arco e a aljava de flechas
a tiracolo, entrou na água, e atravessou uma galeria, saindo do outro lado. Não
viu ninguém, mas escutou gritos no interior do palácio. Um estrondo violento ecoou,
quando os portões da alcáçova caíram. Temendo não ter tempo, Mem aproximou-se
da varanda do palácio até onde, um dia, tinha subido para salvar a vida a
Zaida.
Como da primeira vez, trepou pela
parede e, ao avançar na varanda, viu Zaida no quarto, sentada na cama com Maryam
ao lado. As duas rezavam. Zaida, temos de fugirl!,gritou ele. O olhar da
princesa revelou o caleidoscópio de emoções contraditórias que lhe habitava a alma:
a responsabilidade de uma mãe angustiada, o desgosto pela perdição da cidade, a
esperança na salvação ao vê-lo. Mas a tudo se sobrepunha uma profunda descrença,
um terror sinistro de Ibn Wasir. Mem, são muitos, só podemos rezar, gemeu ela. O
antigo almocreve, para lhe dar confiança, apenas disse: vinde comigo. Por instantes,
ela acreditou, mas logo abanou a cabeça. Wasir vai matar-nos.
Empenhado, Mem empurrou-as para a
varanda. No jardim, os primeiros soldados de Wasir apareciam. Onde é a escada?,
perguntou Mem. A princesa apontou para um canto da varanda e os três desceram os
degraus de pedra por onde as moças do harém subiam, quando vinham satisfazer Ibn
Qasi. Chegaram a uma pequena sala, onde havia uma porta para o exterior. Mem pegou
ao colo em Maryam e avançou sem hesitar. Vamos! Já no jardim, apontou para a galeria
subterrânea e acelerou o passo, seguido por Zaida. Enquanto corria, o cavaleiro
de Almourol viu dezenas de guardas aparecerem e, de repente, distinguiu Ibn Qasi.
Mau combatente, morre sem gente.
Rodeado pelos seus últimos fiéis,
de alfange na mão, o sufi lutava contra vários feddayins. Com um gesto
rápido, Mem obrigou a princesa e a filha a desviarem o olhar, forçando-as a esconderem-se
no riacho subterrâneo. Ficai quietas, ordenou. Não as ia deixar ver Qasi morrer
e só ele observou o marido de Zaida a ser atingido na barriga, que se abriu em sangue
e vísceras. Depois de cair, Qasi foi degolado por um assassin, que pegou
na cabeça do sufi pelos cabelos e a levantou no ar, com uma alegria
doentia». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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