Lisboa. 4 de Setembro de 1493
«(…) Manuel voltou às suas ocupações
e deu a conversa por terminada. Tinha passado muito tempo sobre tudo aquilo, a
revolta, a inquietação pela sorte do seu irmão, a certeza de ser o único
depositário dos bens e da tradição da casa de Viseu... Agora já não se preocupava
com isso. O seu coração ocupava-se a evocar as douradas terras de leste, as amplas
planícies castelhanas, impudicas na sua nudez, onde qualquer sombra se torna
num dom inesperado. Ali, num qualquer dos muitos castelos que marcam a
paisagem, estaria Isabel. Imaginou-a a ler junto de uma janela, a bordar à
sombra dos álamos, a desfrutar da conversa das suas damas... De novo a voz de
Diogo Silva tirou-o do seu sonho. Notícias da corte, anunciou-lhe ao mesmo
tempo que lhe estendia um pergaminho que tinha recebido de um jovem pajem que,
imóvel debaixo do lintel da porta, parecia esperar a resposta. Manuel leu
atentamente a nota e dirigindo-se ao recém-chegado anunciou-lhe: podeis dizer a
Sua Majestade, João II, que amanhã sem falta e à hora indicada irei ao seu
palácio.
Granada. 22 de Novembro de 1495
Elvira entrou no aposento com um jarro
de limonada e colocou-o em cima de uma pequena mesa de embutidos, muito perto
de onde se encontrava a rainha. Em volta dela, as infantas Isabel, Joana, Maria
e Catarina afadigavam-se no bordado de uma enorme toalha de altar. A soberana,
pelo contrário, costurava primorosamente um gibão de Fernando, seu marido. Desde
que se casaram, em 1469, tinha por costume encarregar-se pessoalmente da roupa
do monarca. Gostava de coser, mas fazia-o sobretudo para se sentir próxima da
presença do homem que amava sinceramente, mas de cuja companhia desfrutava
menos do que teria desejado. As contínuas viagens do rei a territórios
aragoneses ou as suas empresas militares afastavam-no frequentemente do seu
lado e a soberana só podia sentir saudades da sua companhia e lutar
continuamente contra o aguilhão de uns ciúmes não completamente infundados.
Enquanto Joana Guzmán servia a
limonada, a rainha entreteve-se a observar o harmonioso grupo que formava a sua
prole: Joana, temperamental e inquieta, tão parecida com a sua sogra, Joana
Enríquez, no físico como no carácter com sua mãe, Isabel de Avis; Maria, serena
e reservada, já uma mulher aos treze anos feitos há pouco; a pequena Catarina,
tão decidida, com os seus caracóis louros e rebeldes escapando da touca e
atrapalhando os olhos... Teve de reprimir um suspiro ao deter-se em Isabel, a
sua primogénita, sempre calada, sempre triste, sempre distante desde que lhe
negara a permissão para ingressar como clarissa. O que era feito da menina que
vinha ter com ela quando estava preocupada ou da sorridente noiva de Sevilha?
A voz aguda de Catarina
interrompeu os seus pensamentos: está muito fria!, lamentou-se ao provar a
limonada. A infanta Joana sorriu. O que esperavas? Na serra já nevou. Em vez de
limonada deveríamos tomar uma chávena desse novo elixir que dizem que há nas
Índias e a que chamam cho..., hesitou, cholocate! Cho-co-la-te, rectificou a
rainha, sem erguer os olhos da costura. Dizem, continuou a infanta Joana, que
aquece a alma e o corpo e que são tais os seus benefícios que quem o ingere
seria capaz de vencer a hidra de sete cabeças de um só golpe. Não sabeis o que
dizeis, Joana. O almirante Colombo deu-nos a provar e é muito desagradável ao paladar.
É picante, amargo... pouco êxito lhe auguro apesar da muita estima que os
nativos têm por ele!, assegurou a rainha.
Vazio o jarro, Elvira recolheu-o e
apressou-se a sair do aposento. Bem sabia como acabaria a conversa. Joana e
Catarina envolver-se-iam numa das suas discussões, Maria tentaria apaziguá-las
e Isabel continuaria fechada no seu mutismo. Caminhou pelo corredor apressadamente
mas, de repente, dona Leonor atravessou-se no seu caminho: como está? Como está
quem?, respondeu com alguma impertinência a camareira. Não tinha tempo a
perder. Ainda tinha de passar pelas cozinhas, acender os braseiros, preparar os
aquecedores das camas, arranjar os quartos para a noite e, às seis, esperava-a
no pátio traseiro Rodrigo, o palafreneiro do príncipe João, com quem andava a
conversar o que, se ela o soubesse, não teria a aprovação da velha aia. Quem
havia de ser, criatura! A infanta nossa senhora... Qual delas? Dona Isabel,
evidentemente. Por acaso Joana, Maria ou Catarina precisam dos meus cuidados?» In As
Mulheres de D. Manuel I, Maria Pilar Queralt del Hierro, A Esfera dos Livros,
Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-247-1.
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