domingo, 2 de dezembro de 2018

As Mulheres de D. Manuel I. Maria Pilar del Hierro. «O que esperavas? Na serra já nevou. Em vez de limonada deveríamos tomar uma chávena desse novo elixir que dizem que há nas Índias e a que chamam cho..., hesitou, cholocate!»

jdact

Lisboa. 4 de Setembro de 1493
«(…) Manuel voltou às suas ocupações e deu a conversa por terminada. Tinha passado muito tempo sobre tudo aquilo, a revolta, a inquietação pela sorte do seu irmão, a certeza de ser o único depositário dos bens e da tradição da casa de Viseu... Agora já não se preocupava com isso. O seu coração ocupava-se a evocar as douradas terras de leste, as amplas planícies castelhanas, impudicas na sua nudez, onde qualquer sombra se torna num dom inesperado. Ali, num qualquer dos muitos castelos que marcam a paisagem, estaria Isabel. Imaginou-a a ler junto de uma janela, a bordar à sombra dos álamos, a desfrutar da conversa das suas damas... De novo a voz de Diogo Silva tirou-o do seu sonho. Notícias da corte, anunciou-lhe ao mesmo tempo que lhe estendia um pergaminho que tinha recebido de um jovem pajem que, imóvel debaixo do lintel da porta, parecia esperar a resposta. Manuel leu atentamente a nota e dirigindo-se ao recém-chegado anunciou-lhe: podeis dizer a Sua Majestade, João II, que amanhã sem falta e à hora indicada irei ao seu palácio.

Granada. 22 de Novembro de 1495
Elvira entrou no aposento com um jarro de limonada e colocou-o em cima de uma pequena mesa de embutidos, muito perto de onde se encontrava a rainha. Em volta dela, as infantas Isabel, Joana, Maria e Catarina afadigavam-se no bordado de uma enorme toalha de altar. A soberana, pelo contrário, costurava primorosamente um gibão de Fernando, seu marido. Desde que se casaram, em 1469, tinha por costume encarregar-se pessoalmente da roupa do monarca. Gostava de coser, mas fazia-o sobretudo para se sentir próxima da presença do homem que amava sinceramente, mas de cuja companhia desfrutava menos do que teria desejado. As contínuas viagens do rei a territórios aragoneses ou as suas empresas militares afastavam-no frequentemente do seu lado e a soberana só podia sentir saudades da sua companhia e lutar continuamente contra o aguilhão de uns ciúmes não completamente infundados.
Enquanto Joana Guzmán servia a limonada, a rainha entreteve-se a observar o harmonioso grupo que formava a sua prole: Joana, temperamental e inquieta, tão parecida com a sua sogra, Joana Enríquez, no físico como no carácter com sua mãe, Isabel de Avis; Maria, serena e reservada, já uma mulher aos treze anos feitos há pouco; a pequena Catarina, tão decidida, com os seus caracóis louros e rebeldes escapando da touca e atrapalhando os olhos... Teve de reprimir um suspiro ao deter-se em Isabel, a sua primogénita, sempre calada, sempre triste, sempre distante desde que lhe negara a permissão para ingressar como clarissa. O que era feito da menina que vinha ter com ela quando estava preocupada ou da sorridente noiva de Sevilha?
A voz aguda de Catarina interrompeu os seus pensamentos: está muito fria!, lamentou-se ao provar a limonada. A infanta Joana sorriu. O que esperavas? Na serra já nevou. Em vez de limonada deveríamos tomar uma chávena desse novo elixir que dizem que há nas Índias e a que chamam cho..., hesitou, cholocate! Cho-co-la-te, rectificou a rainha, sem erguer os olhos da costura. Dizem, continuou a infanta Joana, que aquece a alma e o corpo e que são tais os seus benefícios que quem o ingere seria capaz de vencer a hidra de sete cabeças de um só golpe. Não sabeis o que dizeis, Joana. O almirante Colombo deu-nos a provar e é muito desagradável ao paladar. É picante, amargo... pouco êxito lhe auguro apesar da muita estima que os nativos têm por ele!, assegurou a rainha.
Vazio o jarro, Elvira recolheu-o e apressou-se a sair do aposento. Bem sabia como acabaria a conversa. Joana e Catarina envolver-se-iam numa das suas discussões, Maria tentaria apaziguá-las e Isabel continuaria fechada no seu mutismo. Caminhou pelo corredor apressadamente mas, de repente, dona Leonor atravessou-se no seu caminho: como está? Como está quem?, respondeu com alguma impertinência a camareira. Não tinha tempo a perder. Ainda tinha de passar pelas cozinhas, acender os braseiros, preparar os aquecedores das camas, arranjar os quartos para a noite e, às seis, esperava-a no pátio traseiro Rodrigo, o palafreneiro do príncipe João, com quem andava a conversar o que, se ela o soubesse, não teria a aprovação da velha aia. Quem havia de ser, criatura! A infanta nossa senhora... Qual delas? Dona Isabel, evidentemente. Por acaso Joana, Maria ou Catarina precisam dos meus cuidados?» In As Mulheres de D. Manuel I, Maria Pilar Queralt del Hierro, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-247-1.

Cortesia de EsferadosLivros/JDACT