domingo, 2 de dezembro de 2018

As Mulheres de D. Manuel I. Maria Pilar del Hierro. «O aio insistiu: é verdade, senhor duque. Diz-se que o rei anda já ocupado a procurar a intercessão do Papa para estabelecer os limites de cada reino nas terras recém-descobertas»

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Lisboa. 4 de Setembro de 1493
«(…) Estava sozinho, dizia para consigo. E era nesses momentos que uma irreprimível angústia lhe oprimia o peito e teria dado a sua vida para que, na ala oposta do palácio, Isabel estivesse à sua espera. Porque essa e não outra era a razão pela qual Manuel, duque de Viseu, grão-mestre da Ordem de Cristo e o homem mais importante da corte depois do rei, se perdera em melancolias. Chorava o sobrinho definitivamente ausente, sim; mas também por ter perdido a única mulher que tinha amado. Ninguém suspeitara de nada. Reservado, nem os que lhe eram mais chegados conheciam os seus sentimentos. O respeito para com o príncipe morto e o seu próprio sentido de honra obrigavam-no a manter segredo. Quando conheceu a noiva do seu sobrinho Afonso ficou fascinado pela sua delicadeza, pela sua timidez e pela sua inegável beleza. A infanta castelhana partilhava com a mãe a sua tez de porcelana e os cabelos louros mas era mais alta do que a rainha Isabel e possuía um tal porte que quem não a conhecesse podia tomá-la por altiva. Como se isto não bastasse, quando com ela conviveu, Manuel teve de se render diante de uma conversação refinada e culta e uma firmeza de carácter pouco vulgar. Não obstante, nunca tentou qualquer aproximação. Isabel era a mulher de Afonso, gostava dele como sobrinho e respeitava-o como herdeiro. Mas mesmo sabendo que ela era fruto proibido, Manuel tinha sido feliz só por a saber por perto.
Naquela manhã, sentado diante da grande janela do seu quarto de estudo na ala oeste do palácio perto do castelo de S. Jorge, o duque deleitava-se na recordação contemplando o ir e vir dos veleiros no estuário do Tejo. Entretanto, os últimos raios de sol deslizavam pelos telhados vermelhos das casas que se apinhavam aos pés da fortaleza fundindo-se com eles. Esta nossa Lisboa não pode negar que um dia foi árabe, interrompeu-o o seu fiel Diogo Silva, reparai, senhor, no traçado das ruas que descem até ao rio, como parecem os corredores de um mercado árabe. Não estava entretido com ruas e praças, mas mais além, a olhar para o mar. Pensai, Diogo, que dele nos hão-de chegar grandes e abundantes dádivas...
Certamente, senhor. Vede apenas os êxitos de Castela. Diz-se que um genovês chamado Colombo descobriu novas e ubérrimas terras. Castela quer disputar a Portugal o domínio dos mares mas não o conseguirá. Manuel sublinhou as suas palavras com um enérgico gesto, embora a sua voz soasse monocórdica e indiferente. Era evidente que não lhe apetecia conversar. O aio insistiu: é verdade, senhor duque. Diz-se que o rei anda já ocupado a procurar a intercessão do Papa para estabelecer os limites de cada reino nas terras recém-descobertas. Compreendendo que era impossível furtar-se à conversa, Manuel decidiu continuá-la: melhor teria feito se tivesse prestado atenção ao tal Colombo quando este lhe propôs que financiasse a empresa. Também, quem é que iria pensar que esse aventureiro genovês tinha razão!, procurou justificar o monarca. E agora já é tarde para se arrepender. Melhor faria o nosso senhor João II se esquecesse o seu afã em dividir o mundo com a rainha de Castela, e organizasse o seu próprio reino que mau futuro espera uma monarquia sem sucessor...
Diz-se, Diogo Silva baixou a voz, que está decidido a nomear herdeiro o seu bastardo, Jorge Lencastre. Mas que a rainha, vossa irmã Leonor, opõe-se com todas as suas forças a tal decisão. Se o não fizer... Sabendo de antemão o que o velho preceptor ia dizer, Manuel adiantou-se-lhe: se, eu sei. Nesse caso, seria eu quem melhor e maior direito teria à sucessão pela minha condição de único descendente varão do rei Duarte I, meu avô, que a Glória tenha. Mas asseguro-vos, Diogo, que não tenho o mínimo interesse nisso. Além disso, embora seja verdade que sou neto do meu avô, também sou irmão de Diogo de Viseu e que tal condição não me parece o melhor aval para me aproximar do trono.
O aio passou a mão pela barba como querendo reflectir e em voz baixa lamentou: tendes razão. Fraco favor vos fez Diogo ao rebelar-se contra a Coroa! Mas, depois de receber o seu castigo, o rei fez-vos depositário de todos os seus bens e honras. É de crer, pois, que vos eximiu de qualquer culpa. Consta-me que assim é, Diogo, respondeu Manuel, mas pensai quanto ódio guardaria o coração do rei para matar o meu irmão com as suas próprias mãos, sem ter em consideração que era, além de nobre e mestre da Ordem de Cristo, o irmão da rainha... Não era ódio, senhor. Era justiça. O nosso rei João II quis apenas reforçar o poder da Coroa para fazer o país forte, evitando que se enfraquecesse em facções nobiliárias. A revolta de Diogo merecia um bom castigo e o rei só o aplicou, não só para implantar a justiça mas como aviso aos navegantes». In As Mulheres de D. Manuel I, Maria Pilar Queralt del Hierro, A Esfera dos Livros, Lisboa, 2010, ISBN 978-989-626-247-1.

Cortesia de EsferadosLivros/JDACT