terça-feira, 11 de dezembro de 2018

As Naus. António Lobo Antunes. «O cabo da véspera espiou da repartição de tijolo, e sempre que se aproximava as fivelas das polainas tilintavam e as feições reduziam-se a nódulos inexpressivos de pau»

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«(…) Cheirava a calor e a desperdícios e de tempos a tempos farrapos de jornal erguiam uma brisa de notícias da calçada. Urinei à sombra de uma camioneta de fruta e enquanto desabotoava a breguilha e o ar se tingia de fragrâncias de pêssego lembrei-me de Loanda às seis da tarde, à hora a que os barcos largavam para a pesca diminuindo a fumegar entre troncos de palmeiras. Urinei a pensar no relojoeiro surdo-mudo, de pupilas de Charlot, cercado por centenas de cucos furiosos, que consertava molas microscópicas a dez metros do meu emprego, a pensar em Miguel Cervantes Saavedra que nos gritava por vezes episódios esquisitos de dulcineias e moinhos e acrescentava excitadíssimo, a palpar o lápis no casaco, Vou enfiar isto no meu livro, vou enfiar isto no meu livro, a pensar no reformado da sueca que vedava com rolhões de pano e estearina de vela as frestas do caixão e se instalava ao meu lado no beliche a exibir fotografias antigas coladas num caderno de escola, Aqui sou eu no cavalo de pasta aos quatro anos, O terceiro a partir da esquerda sou eu na tropa em Tancos, Esta tirou-me o meu irmão Paulo quando descobri o caminho marítimo para a Índia, Agora, que engraçado, repare, estou com os colegas da secção de rótulos da fábrica de cerveja, por sinal que me ofereceram uma caneta com aparo de oiro e um diploma encaixilhado, com uma placa em baixo e as assinaturas de todos, Que pena, ó Gama, já não trabalhares cá, o reformado que se alongava em episódios sem fim da sua juventude de sapateiro em Vila Franca, terra que a vermelhinha do Tejo ora mostrava ora escondia consoante as cheias, abandonando, ao retirar-se, ventres inchados de bois e os saxofones entupidos da banda do coreto.
O primo que dirigia o negócio das solas escrevera-lhe para África a oferecer um quarto e sociedade na loja, e eu, que não conhecia ninguém em Portugal, decorei o endereço para o visitar pela Páscoa com um saquinho de broas e um baralho americano com mulheres nuas do outro lado dos valetes. Acabei de urinar no momento em que uma locomotiva arrancou confundindo o seu apelo com o apelo dos barcos, e tornei para o cais sem saber o que fazer com o trambolho da urna a que o maneta das cautelas, num impulso absurdo de artista, prometera um poema, Apeio-me do cavalo em Madrid, tranco-me em casa e escrevo-o num segundo, não custa nada, ora que espiga, copio tudo em papel de carta de avião e dentro de um mês o máximo está cá. Cocei as crostas do herpes da orelha, cuspi para a água invisível na esperança de uma ideia, mas onde catano sepultar o pai se não há dinheiro sequer para o serviço dos mortos?
Se não fosses completamente parvo, explicava-me o reformado manipulando damas, num dos seus raros instantes de compaixão e áspera amizade, esquecias-te do defunto na mesa onde o deixaram, de mão de unhas compridas quase a agarrar o galheteiro porque os gajos se pelam por azeite como os mochos, chupam-no agitando as asas nos armazéns das mercearias, mas a mim afligia-me a ideia de que pudesse apodrecer sozinho em África, com malmequeres nas cerdas do nariz, rodeado de salamandras e lacraus. Ao sétimo escarro amanheceu: uma claridade de alguidar revelava os guindastes, o perfil das naus de Ceilão, a labareda da Siderurgia ao longe, e o esqueleto do supliciado no altar do seu patíbulo. Os milhafres e os corvos voltaram, o cabo da guarda-fiscal desapareceu. Uns pescadores de camisa estampada instalaram-se a dez ou vinte metros do caixão, cada qual com o seu cabaz e a sua cana, mas decorridas algumas horas de não apanharem nada jogaram a tralha para uma furgoneta da companhia do gás e escaparam-se mais ou menos pelo mesmo trajecto do senhor Gama e do espanhol, sacudindo as chapas soltas do capot nos carris do comboio, e ao irem-se embora regressou a noite: as luzes acenderam-se, os pavios das canoas baloiçavam, o volume incompleto dos Jerónimos, vigiado por infanções de alabarda, adquiriu uma grandeza imprevista. O cabo da véspera espiou da repartição de tijolo, e sempre que se aproximava as fivelas das polainas tilintavam e as feições reduziam-se a nódulos inexpressivos de pau». In António Lobo Antunes, As Naus, 1988, Publicações dom Quixote, LeYa, 2016, ISBN 978-972-205-995-4.

Cortesia de PdQuixote/LeYa/JDACT