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«(…) Qualquer coisa penugenta enrosca-se
na concha da minha mão direita. Um rato? Será que esta caverna em que me aprisionaram
é um antro infestado de bichos? Não consigo virar a cabeça para dar uma
espreitadela. Abaixo do meu pulso palpita a esperança de que o animalzinho não
me morda. Yaphiel, talvez aches isto cómico, mas mais tarde vim a descobrir que,
em circunstâncias estranhas, a mão de um velho amigo pode parecer um rato trémulo.
Sinto que me seguram por trás dos ombros e me colocam em posição vertical. O
jovem de cabelo comprido e a mulher da cicatriz em forma de crescente desdobram
um pano de linho grosseiro que se encontrava enrolado à volta do meu peito e
pernas. Terei adormecido enquanto eles trabalham? A seguir só me lembro do velho
choroso a colocar o seu xaile de orações sobre o meu sexo nu.
Um homem esguio, de capa e capuz
de chamalote, leva-me aos lábios uma concha de madeira. É paciente comigo, este
estranho de mãos generosas e fortes, e eu bebo sofregamente quando volta a
dar-me de beber e outra vez e... Ao fim de algum tempo, divido-me em duas pessoas:
um ser exausto, desesperado por matar a sede, e um observador distante e
curioso que pergunta a si próprio por que razão um acto tão simples se tornou
uma tarefa tão difícil, e o que é que toda aquela gente da Judeia quer de mim.
Depois de ter bebido, reparo que tenho um colar de âmbar à volta do pescoço. As
contas são de um amarelo-leitoso. Quando tento tocar-lhe, sinto a mão de novo
atacada por tremores. Ajudem-me.
Não me sai a voz, mas o jovem de
cabelo comprido lê-me o desespero na cara e ergue o colar para eu poder vê-lo.
Será aquele que a minha mãe usava sempre? Mostra-lhe o talismã! Uma voz
enfática de mulher diz-lhe que me mostre uma rodela de pergaminho que também me
puseram ao pescoço. Nela estão grosseiramente desenhadas quatro figuras, todas
com olhos ovais, ao estilo egípcio. Por cima das cabeças, os respectivos nomes
angelicais: Mikhael, Gavriel, Uriel e Raphael. Por baixo das figuras, uma
citação dos Salmos, escrita numa letra de criança: o Senhor é o teu único refúgio,
o Altíssimo o teu auxílio. Por isso, nenhum mal te acontecerá, nenhuma epidemia
chegará à tua tenda. É que Ele deu ordem aos Seus anjos para que te guardem em
todos os teus caminhos.
A
melodia de uma flauta, uma música frígia, simultaneamente triste e queixosa,
alicia-me para o sono, que invade o meu corpo, quente e abundante como um mar
que ondula suavemente. Algum tempo depois, tomo gradualmente consciência de um
peso no peito. Dá-me a sensação de estar ali há muito tempo. O homem que me
ajudou a beber beija-me nos lábios. Tirou o capuz. Tem os olhos vermelhos e
inchados. Tem estado a chorar alguém, penso, e apetece-me perguntar-lhe se lhe
morreu algum amigo, mas continuo incapaz de encontrar a minha voz». In
Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN
978-972-004-854-7.
Cortesia
de PEditora/JDACT