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«(…) Os livros históricos sobre judeus
portugueses, na maior parte, não foram obra dos judeus portugueses, mas de historiadores
de outras origens, juntando as suas problemáticas próprias a essa história fascinante.
Em Portugal, invoca-se a presença judaica para se redescobrir a complexidade pluralista
das comunidades em solo nacional. E no mundo clerical, feudal e colonial, que foi
o da história portuguesa, os historiadores esquerdistas valorizaram o drama duma
minoria, que foi o adversário e a vítima. Houve, com ela, um núcleo do mundo moderno
numa sociedade cristã, que o ignorava, tolerava e, por fim, o perseguia e suprimia.
Ainda assim, foi difícil aceitar o facto de que esses espíritos críticos pertenciam
a uma religião, que o preconceito esquerdista tinha por pouco moderna.
Na historiografia judaica, os judeus
portugueses constituem o vínculo que unifica duas narrativas: o século do ouro do
judaísmo hispânico e a emancipação na modernidade. Um livro colectivo, editado
por Richard Barnett há vinte/trinta anos, popularizou a noção dos sefarditas
ocidentais. O Ocidente, neste contexto, não é realidade geográfica, mais simbólica:
os sefarditas de Marraquexe são orientais, mas os de Veneza, ocidentais.
Os judeus portugueses ou sefarditas ocidentais representam um aspecto da modernidade
antes da época moderna, anunciadora da emancipação, com dois séculos de
antecipação.
Esta noção não fala de judeus em Portugal,
nem de sefarditas ocidentais; fala, sim, de judeus portugueses, e trata de conhecer
a sua visão sobre a sua própria identidade histórica, que teceu, numa parte da
diáspora judaica, a identificação com Portugal, no uso da língua, na memória das
origens, no mito da expansão. O ser judeu português recebeu ainda outras
propriedades: a mudança de religião, a mobilidade identitária. Na Espanha do século
XVII, ser português é ser cristão-novo; na diáspora judaica, ser português significa
ser judeu-novo, apóstata voltado à lei de Israel. Ser judeu português foi
ser participante duma experiência cultural dolorosa e libertadora. Há que escrever
a história dos judeus portugueses através dessas rupturas. O abade Vertot chamou,
em 1758, ao seu livro de história portuguesa Histoire des révolutions du Portugal,
História das revoluções de Portugal,: e, do mesmo modo, também a história
judaica portuguesa só se entende como uma história de mudanças e de revoluções.
Não nos servem muito os juízos gerais sobre a identidade judaica, nem portuguesa.
O que faz falta é conhecer que revoluções foram essas, quando se fizeram, como,
por quem, porquê, com que efeitos, a curto e a longo prazo, e como
condicionaram a revolução seguinte.
A primeira ruptura foi o decreto de
expulsão de 1496, transformada, pela força, em conversão geral no ano seguinte.
Fez com que Portugal se transformasse, de um pais excepcionalmente tolerante, no
contexto da Idade Média europeia, num país de uma única religião, exclusiva e repressiva,
e, portanto, num país que, com poucas excepções, não aceitava judeus declarados
no seu solo. A supressão brutal da presença judaica, até então reconhecida no
país, foi, na verdade, o resultado dessa marcada presença. Sendo os judeus indispensáveis
na administração e na economia portuguesa, teria sido economicamente desastroso
expulsá-los; porém, exigindo a Espanha a sua expulsão, não expulsá-los teria causado
uma crise diplomática. O monarca Manuel I, obrigando os judeus a baptizarem-se,
conseguiu as duas condições para a expansão: um século de paz com Espanha, e uma
classe financeira doméstica. Conseguiu a quadratura do círculo». In
Carsten L. Wilke, História dos Judeus Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN
978-972-441-578-9.
Cortesia de E70/JDACT