«(…) A segunda ruptura foi o Massacre
de Lisboa em 1506 e a fundação da Inquisição (maldita) em 1536, duplo início
de um movimento de três séculos de emigração paulatina, que transformou os cristãos-novos
portugueses em judeus, judeus-novos no exílio. Tentei seguir os tempos, e não tanto
os lugares da emigração: ela foi uma coisa no século XVI, no mundo muçulmano e na
Índia; outra, no século XVII, com a fundação de comunidades judaicas nos portos
do Atlântico; outra ainda no século XVIII, com o estabelecimento e adaptação dos
últimos emigrantes nos impérios inglês e francês, mantendo-se o criptojudaísmo no
país em constante intercâmbio com a diáspora. Decidi-me a descrever essa diáspora
na sua evolução no tempo, em vez de dar um quadro estático no espaço.
Quanto à terceira ruptura, o
liberalismo do século XIX, sim, revolucionou, já antes da fim da monarquia e com
estranha força, a mentalidade portuguesa face aos judeus. Intelectuais portugueses,
como Eça de Queirós, foram muito mais críticos do antissemitismo do que os seus
colegas alemães e franceses. Essas rupturas, essas révolutions du Portugal,
escondem linhas de continuidade. A integração dos judeus na sociedade portuguesa
medieval é, no fundo, o que explica a tentação de perfazer a integração pela
cristianização forçada. A Inquisição (maldita) é a versão canalizada e institucionalizada
do massacre popular: o reino reserva-se o monopólio da violência antijudaica. E,
do mesmo modo, a revolução liberal não foi ruptura, mas lógica consequência, num
país que viveu profundamente o traumatismo da tirania. Finalmente, os que se viriam
a apelidar de judeus portugueses no exílio foram marcados por duas rupturas sucessivas.
A história judaica portuguesa não corresponde à fórmula de baptismo ou emigração;
a fórmula é antes: baptismo e emigração.
A um nível mais profundo, há linhas
de continuidade na história dos judeus portugueses. A alienação das tradições
religiosas não foi a única razão de ser do carácter inovador dos judeus portugueses.
Já antes da crise de Manuel I traziam à vida económica a inovação industrial, comercial
e financeira, com destaque para a civilização do consumo. Já na Idade Média, compravam
os cristãos, nos seus rústicos castelos, aos judeus, os produtos de luxo fabricados
pelos mouros. E na idade pré-moderna, os judeus e, mais tarde, os cristãos-novos
participaram na invenção do consumismo cosmopolita, fazendo o comércio da pimenta
e do açúcar, do chocolate e do tabaco, dos diamantes e do índigo e do pau-brasil,
do almíscar, dos papagaios, dos canários. Encheram o Sul da Europa com panos, telas
e sedas, e, o Norte, com vinhos, amêndoas e compotas. Ainda no século XX, desenvolveram
as suas actividades nos intercâmbios internacionais, fazendo a técnica
fotográfica ou calças jeans para o Continente, os Açores e a Madeira.
Na economia política, os conselheiros
judaicos dos poderosos constituíram uma verdadeira tradição. Os reis do Portugal
medieval tinham os seus almoxarifes judeus; os do Renascimento tinham ao seu serviço
os cristãos-novos monopolistas das especiarias. Outros monarcas europeus tinham
seus banqueiros portugueses. Joseph Nasci governou o império Otomano para o sultão
Selim. Filipe de Castela tinha os seus Portugueses, que vendiam as lãs de Espanha
e lhe compravam as suas armas. O rei britânico Guilherme III dispunha do jovem Francisco
Lopes Suasso; a imperatriz austríaca Maria Teresa tinha o seu Diogo Aguilar. Napoleão
III tinha os irmãos Péreire, e por último, Salazar, o seu Moses Bensabat Amzalak.
A economia dos judeus portugueses procurou uma colaboração e um equilíbrio: entre
a empresa livre e as finanças públicas, eles foram os instrumentos da política fiscal
dos monarcas, das companhias coloniais e dos bancos do crédito popular.
Finalmente, a adaptação da existência
e da religião judaicas à estética das elites parece continuar na história. Os judeus
portugueses foram os inventores da tradução da cultura judaica para as literaturas
europeias. Na Lisboa medieval, os judeus adoptaram a moda do gótico com lobas,
capuzes finos e gibões de seda, espadas douradas, toucas em rebuço, jaezes e guarnimentos.
Vemos os varões judeus do barroco com lobas negras e gargantilhas; os das Luzes
com perucas, calções, meias de seda; e os do século burguês com chapéu alto, casaca,
gravata e luvas. E das damas nem falarei... O judaísmo português pretendeu ser um
judaísmo aristocrático, elegante, perfumado, e esta imagem tem o seu quê de realidade.
Ser judeu português é não deixar-se prender pela religião no sentido institucional,
nem pela nacionalidade, no sentido territorial. Ser judeu português é ser moderno,
burguês, ocidental, elegante, cosmopolita, poderoso, político». In
Carsten L. Wilke, História dos Judeus Portugueses, 2007, Edições 70, 2009, ISBN
978-972-441-578-9.
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