terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Memorial do Convento. José Saramago. «Para dona Maria Ana é que lhe vem chegando o tempo. A barriga não aguenta crescer mais por muito que a ele estique, é um bojo enorme, uma nau da Índia, uma frota do Brasil»

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«(…) Mas tem cada coisa seu tempo. Por enquanto, faltando ao padre Bartolomeu Lourenço o dinheiro para comprar os ímanes que, na sua ideia, hão-de fazer voar a passarola, cujos, ainda por cima, terão de vir do estrangeiro, está Sete-Sóis no açougue do Terreiro do Paço, por empenho do mesmo padre, transportando ao lombo peças de carne variada, quartos de boi, leitões às dúzias, carneiros aos pares, que passam de um gancho para outro gancho, e no trânsito deixam toalhas de sangue na serapilheira que lhe cobre as costas e a cabeça, é um ofício sujo, vá lá que compensado por algumas sobras, um pé de porco, uma franja de dobrada, e, querendo Deus e o humor do açougueiro, a apara de vazia, de alcatra ou pojadouro, embrulhados numa crespa folha de couve, para que Blimunda e Baltasar se alimentem um pouco melhor que o vulgar, quem parte e reparte, mesmo não sendo Baltasar o da partição, para alguma coisa aproveitaria a arte.
Para dona Maria Ana é que lhe vem chegando o tempo. A barriga não aguenta crescer mais por muito que a ele estique, é um bojo enorme, uma nau da Índia, uma frota do Brasil, de vez em quando manda el-rei saber como vai a navegação do infante, se já se avista ao longe, se o traz bom vento ou sofreu assaltos, como aqueles que sofrem as nossas esquadras, que ainda agora, na altura das ilhas, tomaram os franceses seis naus mercantes nossas e uma de guerra, que tudo isto e muito mais se podia esperar dos cabos que temos e dos comboios que armamos, e agora parece que vão os ditos franceses esperar o resto dos nossos barcos à entrada de Pernambuco e da Baía, se é que não estão já à espreita da frota que há-de ter saído do Rio de Janeiro. Tantas foram as descobertas que fizemos quando houve que descobrir, e agora nos passam os outros à capa como a inocentes touros, sem artes de marrar, ou não mais que por acaso. A dona Maria Ana chegam também estas más notícias, coisas que sempre aconteceram há um mês, dois meses, quando o infante ainda era no seu ventre uma gelatina, um girino, um troço cabeçudo, é extraordinário como se formam um homem e uma mulher, indiferentes, lá dentro do seu ovo, ao mundo de fora, e contudo com este mundo mesmo se virão defrontar, como rei ou soldado, como frade ou assassino, como inglesa em Barbadas ou sentenciada no Rossio, alguma coisa sempre, que tudo nunca pode ser, e nada menos ainda. Porque, enfim, podemos fugir de tudo, não de nós próprios.
Porém, nem tudo é assim tão deplorável para as navegações portuguesas. Chegou há dias a nau de Macau que se esperava, tendo partido daqui há vinte meses, onde isso vai, ainda Sete-Sóis andava na guerra, e fez feliz jornada apesar de ser larga a viagem, que fica Macau muito para lá de Goa, terra de tantas bem-aventuranças, a China, que excede a todas as outras nos regalos e riqueza, e os géneros todos quanto pode ser baratos, e tem de mais o favorável e sadio do clima, tanto que de todo se ignoram achaques e doenças, por isso não há nela médicos nem cirurgiões, e morre cada um só de velho e desamparado da natureza, que não nos pode garantir sempre. Carregou a nau na China tudo rico e precioso, passou pelo Brasil a fazer negócio e meteu açúcares e tabacos, mais muita abundância de ouro, que para tudo isto deram os dois meses e meio que esteve no Rio e na Baía, e em cinquenta e seis dias de viagem veio de lá aqui, e houve causa milagrosa para que em jornada tão perigosa e dilatada nem adoeceu nem morreu um só homem que fosse, que parece que aproveitou a missa quotidiana que cá se ficou dizendo por intenção da viagem a Nossa Senhora da Piedade das Chagas, e nem errou o caminho, ignorando-o o piloto, se tal é crível, com o que já se vai dizendo que negócios bons são os da China. Mas, para não ser tudo perfeito, chegou a notícia de estar acesa a luta entre os do Pernambuco e os do Recife, todos os dias ali se dão batalhas, algumas muito sanguinolentas, e foram ao ponto de deitar fogo aos matos, queimando todos os açúcares e tabacos, que para el-rei é perda muito considerável.
Dão, se calha, estas e outras notícias a dona Maria Ana, mas ela está flutuando, indiferente, no seu torpor de grávida, dizerem-lhas ou calarem-lhas tanto faz, e até da sua primeira glória de ter fecundado não resta mais que uma ténue lembrança, pequena brisa do que foi vento de orgulho, quando nos primeiros tempos se sentia como aquelas figuras que à proa das naus se põem e que, não sendo as que mais longe observam, para isso lá está o óculo e lá está o gajeiro, são as que mais fundo vêem. Uma mulher grávida, rainha ou comum, tem um momento na vida em que se sente sábia de todo o saber, ainda que intraduzível em palavras, mas depois, com o inchar excessivo da barriga e outras misérias do corpo, só para o dia de parir têm pensamentos, nem todos alegres, quantas vezes aterradas por agoiros, mas neste caso vai ser de grande ajuda a ordem franciscana, que não quer perder o prometido convento. Andam ao despique todas as congregações da Província da Arrábida, dizendo missas, fazendo novenas, promovendo orações, por intenção geral e particular, explícita e implícita, para que nasça bem o infante e numa boa hora, para que não traga defeito visível ou invisível, para que seja varão, com o que alguma mazela menor poderia desculpar-se, senão ver nela especial distinção divina. Mas, sobretudo, porque um infante macho daria maior contentamento a el-rei». In José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.

Cortesia de Caminho/JDACT