«(…) João
V vai ter de contentar-se com uma menina. Nem sempre se pode ter tudo, quantas
vezes pedindo isto se alcança aquilo, que esse é o mistério das orações,
lançamo-las ao ar com uma intenção que é nossa, mas elas escolhem o seu próprio
caminho, às vezes atrasam-se para deixar passar outras que tinham partido
depois, e não é raro que algumas se acasalem, assim nascendo orações arraçadas
ou mestiças, que não são nem o pai nem a mãe que tiveram, quando calha brigam,
param na estrada a debater contradições, e por isso é que se pediu um rapaz e
veio uma rapariga, vá lá saudável e robusta, e de bons pulmões, como se percebe
pela gritaria. Mas o reino está gloriosamente feliz, não só porque nasceu o
herdeiro da coroa e pelas luminárias festivas que por três dias foram
decretadas, mas porque, havendo sempre que contar com os efeitos secundários
que têm as preces sobre as forças naturais, podendo até acontecer que dêem em
grandes secas, como esta que há oito meses durava e só essa causa podia ter,
nem se via que outra fosse, acabadas as orações deu em chover, enfim, que já se
diz que o nascimento da infanta trouxe auspícios de felicidade, pois agora
chove tanto que só Deus a pode estar mandando, por alívio seu da importunação
que lhe fazíamos. Já andam os lavradores lavrando, vão para o campo mesmo
debaixo de chuva, a leiva cresce da terra húmida como saem as crianças lá donde
vêm, e, não sabendo gritar como elas, suspira ao sentir-se rasgada pelo ferro,
e deita-se de lado, luzidia, oferecendo-se à água que continua a cair, agora
muito devagar, quase poalha impalpável, para que não se perca a forma do
alqueive, terra encrespada para o conchego da seara. Este parto é muito
simples, mas não se pode fazer sem aquilo que os outros primeiro requereram, a
força e a semente. Todos os homens são reis, rainhas são todas as mulheres, e
príncipes os trabalhos de todos.
Porém,
não convém perder de vista as diferenças, que são muitas. Foi a princesa a
baptizar, em dia de Nossa Senhora do Ó dia por excelência contraditório, pois
já está a rainha despejada da sua redondez, e logo se observa que, finalmente,
nem todos os príncipes são príncipes por igual, como com muita clareza está
mostrando a pompa e solenidade com que se dará o nome e o sacramento a este, ou
esta, com todo o paço e capela real armados de panos e ouros, e a corte
ajoujada de galas, que mal se distinguem as feições e os vultos debaixo de
tanto adereço de franças e bandarras. Saiu o acompanhamento da câmara da rainha
para a igreja, passando pela sala dos Tudescos, e atrás dele o duque de
Cadaval, com a sua opa roçagando o chão, sob o pálio vai o duque, e às varas
pegam, por distinção, títulos de primeira grandeza e conselheiros de Estado, e
nos braços do duque, quem vai, vai a princesa, enfaixada de linhos, franzida de
laços, escorrida de fitas, e atrás do pálio a nomeada aia, que é a condessa de
Santa Cruz velha, e todas as damas do paço, as formosas e as não tanto, e enfim
meia dúzia de marqueses e o duque filho, que trazem as insígnias da toalha, do
saleiro, do óleo, e o resto, que para todos havia.
Sete
bispos a baptizaram, que eram como sete sóis de ouro e prata nos degraus do
altar-mor, e ficou a chamar-se Maria Xavier Francisca Leonor Bárbara, logo ali
com o título de dona adiante, apesar de tão pequena ainda, está ao colo,
baba-se e já é dona, que fará em crescendo, e leva, por começo, uma cruz de
brilhantes que lhe deu seu padrinho e tio, o infante Francisco, cuja custou
cinco mil cruzados, e o mesmo Francisco mandou à rainha sua comadre, de
presente, uma pluma de toucar, estou que por galantaria, e uns brincos de
diamantes, esses, sim, de superlativo valor, perto de vinte e cinco mil cruzados,
é obra, mas francesa.
Para
este dia baixou el-rei da sua grandeza e majestade e assistiu, não por trás das
rótulas, mas público, e não na sua tribuna, mas na da rainha, em mostra do
muito respeito que lhe merecia, assim posta a feliz mãe ao lado do feliz pai,
ainda que em cadeira mais baixa, e à noite houve luminárias. Sete-Sóis baixou
com Blimunda do alto do castelo para ver as luzes e os adornos, o paço armado
de colgaduras, os arcos mandados levantar pelos ofícios. Está mais cansado que
de costume, talvez por ter carregado tanta carne para os banquetes que
festejaram o nascimento e vão festejar o baptizado. Dói-lhe a mão esquerda de
tanto puxar, içar e arrastar. O gancho descansa no alforge que leva ao ombro.
Blimunda segura-lhe a mão direita. Em um qualquer destes
meses que passaram, morreu de santa morte frei António de S. José. Salvo se
vier a aparecer em sonhos a el-rei, já não poderá recordar-lhe a promessa,
porém sosseguemos, a pobre não emprestes, a rico não devas, a frade não
prometas, e João V é rei de palavra. Haveremos convento.
Dorme Baltasar no
lado direito da enxerga, desde a primeira noite aí dorme, porque é desse lado o
seu braço inteiro, e ao voltar-se para Blimunda pode, com ele, cingi-la contra
si, correr-lhe os dedos desde a nuca até à cintura, e mais abaixo ainda se os
sentidos de um e do outro despertaram no calor do sono e na representação do
sonho, ou já acordadíssimos iam quando se deitaram, que este casal, ilegítimo
por sua própria vontade, não sacramentado na igreja, cuida pouco de regras e
respeitos, e se a ele apeteceu, a ela apetecerá, e se ela quis, quererá ele.
Talvez ande por aqui obra de outro mais secreto sacramento, a cruz e o sinal
feitos e traçados com o sangue da virgindade rasgada, quando, à luz amarela do candil,
estando ambos deitados de costas, repousando, e, por primeira infracção aos
usos, nus como suas mães os tinham parido, Blimunda recolheu da enxerga, entre
as pernas, o vivíssimo sangue, e nessa espécie comungaram, se não é heresia
dizê-lo ou, maior ainda, tê-lo feito. Meses inteiros se passaram desde então, o
ano é já outro, ouve-se cair a chuva no telhado, há grandes ventos sobre o rio
e a barra, e, apesar de tão próxima a madrugada, parece escura noite». In
José Saramago, Memorial do Convento, Editorial Caminho, O Campo da Palavra, 27ª
Edição, 1998, ISBN 972-21-0026-2.
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