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O Mar e o Marão
«(…) Já em 1534, numa altura em que as explorações do Pacífico se encontravam
ainda numa fase praticamente inicial e em que os portugueses não tinham ainda
atingido as ilhas de Cipango, consideradas o outro extremo do orbe, Damião de
Góis nos restitui, através das palavras do embaixador etíope Zaga Zabo, cristão
da Abissínia, onde os Portugueses pensaram encontrar o desejado Preste João,
ter sido aquele embaixador expressamente proibido em Lisboa de comungar, pouco
depois da sua chegada. As razões que levaram a esta proibição prendem-se com o
cristianismo etíope, necessariamente diferente daquele que se desenvolveu na Europa
a partir de Roma, que foi logo depois das primeiras impressões e apresentações,
considerado como heresia. Zaga Zabo, cristão pertencente a uma das linhagens
mais antigas do ramo cristão, aquela que descendia directamente da
evangelização pelos apóstolos, neste caso o apóstolo Filipe (que teria
baptizado Indich, criado da rainha Candace) foi considerado excomungado.
Lembremos ainda que o reino cristão da Etiópia tem origem em Meilech, filho da
Rainha de Sabá, chamada Magueda, e Salomão, que reinava em Jerusalém. Segundo a
lenda, com Meileeh a Arca da Aliança, sinal de eleição passou de Jerusalém para
a Abissínia.
A história de Zaga Zabo, que parece ter funcionado como uma excelente
parábola da situação interna de muitos cristãos inteligentes entre eles a do
próprio Damião de Góis, ao tempo cronista do rei está reproduzida no opúsculo
do mesmo chamado Fídes, Religio, Moresque Aethiopum Sub Imperio Precíosi Joannis,
publicado em Lovaina em 1540.
Mas se Zaga Zabo foi assim tratado como cristão no Portugal dos
Descobrimentos físicos, o padre Francisco Álvares, que escreveu um magnífico
relato da sua estada na Etiópia entre 1520 e 1526, Verdadeira Informaçam das
Terras do Preste João, e a quem é preciso prestar justiça, chegou a celebrar
missa na própria tenda do imperador Lebna Dengel, tendo sido grande amigo do
Patriarca copta da Abissínia o Abuna Marcos, que por sua vez não se importou de
beijar por veneração, o pé do padre Francisco Álvares. Porém as manifestações
de verdadeira fraternização religiosa são a excepção e em 1634, com a morte do
imperador Susenyoso os jesuítas portugueses devido à radical e violenta
intolerância com que tratavam os cristãos etíopes, eram obrigados a deixar para
sempre o país pondo assim ingloriamente fim a uma das mais antigas esperanças
portuguesas do ciclo português do Mar: o encontro e a aproximação com o reino,
espiritualmente desenvolvido, do Preste João.
A gravidade da nossa intolerância religiosa foi tão grande que acabou por
se tornar autêntica perseguição étnica, a pontos de se ter quase assistido, com
o estabelecimento e o desenvolvimento do Santo Ofício (maldito), e um etnocídio generalizado na Península quer dos
judeus quer dos muçulmanos. Este etnocídio porventura o facto mais grave de
toda a nossa consciência de povo dominará já todo o início dum outro ciclo da
nossa história, que está para o Mar como o Futuro está para o Passado. É
provável que a estas três vertentes que diminuem a grandeza do nosso passado será
possível acrescentar, por indicação do mesmo Bruno, uma outra vertente, que
teria por centro a conhecida teoria do padre Serafim Freitas exposta no seu
livro De Justo Imperio Lusitanorum Asiatico, publicado em 1625, em Valhadolid,
em que se negava a liberdade, e se afirmava o exclusivo monopólio material português».
In
António Cândido Franco, O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto, Junho de 1989,
IADE, Lisboa.
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