O Mar e o Marão
«(…) Esta ideia dum mar fechado, vem já dos primórdios da expansão marítima,
talvez do tempo das bulas de Nicolau V e Calisto III ao Infante Henrique,
respectivamente de 1454 a 1456, e é outro dos sinais da imperfeição do nosso
passado, um sinal que diminui decerto a grandeza dessa unidade física da Terra,
a que os portugueses tão esforçadamente se entregaram. Essa unidade da Terra constitui,
aliás muito justamente, um dos factos da glória portuguesa, mas, não constitui
no entanto, o facto maior da sua grandeza passada ou futura.
O hábito de olhar exclusivamente para o passado quando procura, por os
feitos da nossa glória, pode-nos colher indevidamente, escondendo-nos as mais
altas sínteses da nossa história.
A ideia exposta por Antero de Quental nas Conferências do Casino sobre
a decadência dos povos peninsulares tem uma frase paradigmática que, pelas
implicações, vale a pena transcrever:
Nos dois últimos séculos não produziu a Península um único homem
superior que se posso pôr ao lado dos grandes criadores da ciência moderna: não
surgiu da Península nem uma só das grandes descobertas intelectuais, que são a
maior obra e a maior honra do espírito moderno.
Antero dizia isto, visando então como século de viragem do Passado para
o Futuro. Sem sabermos muito bem a partir de que valores uma tal transição
aconteceria, tanto mais que Antero fica nesse aspecto muito aquém de qualquer
definição em profundidade e não apenas em extensão, podemos no entanto inferir
que aquilo que designámos de Futuro teria tido então aí o seu início.
Dissemos que na história dos homens o Passado estabelece uma relação
contrapolar ou antitética com o Futuro como na história das coisas elementares
a Luz estabelece uma relação binária com a Sombra. Antero, e antes dele Herculano,
parece ter resolvido esta relação binária estabelecendo uma contradicção
estritamente linear entre Passado e Futuro, relação esta que me parece ter tido
apenas em conta a extensão e não a profundidade do problema. Quero eu dizer, em
termos de valorização de que o Passado foi para Antero de grandeza, ideia esta
que se encontra já bem explícita nas palavras iniciais d’O Bobo de Herculano,
enquanto que o Futuro, antítese do seu antecedente, de decadência. A Revolução,
esse cristianismo do mundo moderno como Antero lhe chamava seria para ele, como
idade de progresso e de desenvolvimento racional, a possibilidade de superar
essa decadência.
O juízo de Oliveira Martins, formulado na História da Civilização Ibérica
(1879) como resposta a Antero, não parece porém afastar-se no essencial, se
descontarmos talvez a hipótese revolucionária de Antero, da ideia de que a
história portuguesa estaria sujeita a um ciclo do Passado, que teria terminado
nos meados do século XVII, e onde residiria toda a nossa grandeza, e a um ciclo
do Futuro, onde se teria progressivamente afirmado, em relação a esse mesmo
passado, a nossa decadência. A Sombra, face baça e lunar da existência,
seguir-se-ia, na sucessão das coisas, à luz mais alta e mais real.
A grandeza do Passado, Antero não o diz explicitamente mas é fácil
depreendê-lo, teria sido justamente a de ter contribuído como mais nenhum outro
momento para a criação do mundo moderno. E o mundo moderno tem como definição
aquele fundamento existencial e moral, bem português, que preside à unidade
física da Terra e à unidade cultural e social da humanidade. É a unidade
cultural do homem que funda e determina a existência mesma do mundo
contemporâneo. Torna-se óbvia, deste ponto de vista, mesmo deixando passar em aberto,
como Antero e Oliveira Martins fizeram, as nódoas escuras do Passado, a
grandeza que ambos atribuem aos antigos portugueses. Uma tal grandeza, mesmo
que tenha raízes diversas, é um dos consensos mais evidentes entre todos aqueles
que desde há cem anos têm vindo a estudar a história portuguesa». In
António Cândido Franco, O Mar e o Marão. Conferência-Manifesto, Junho de 1989,
IADE, Lisboa.
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