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«(…) Por conseguinte, aquele
mandato do responsável pela cobrança de impostos, para além de surpreendente,
era, acima de tudo, perfeitamente inoportuno. Lúcidio Danígico Tácito, imerso
em tais cogitações, passou ao lado do templo bracarense de Ísis, senhora de
muitos devotos corações dos habitantes da cidade, e reparou que algumas colunas
estavam destruídas. Certamente, coisas
de cristãos, concluiu, tendo em conta as notícias de ataques nocturnos
de gente encapuzada aos templos, oratórios, fontes e todos os lugares onde
luzissem os gloriosos velhos deuses do império. Dobrou, depois, a esquina da
rua onde pairava um leve cheiro a incenso e se vendiam pedras e lápides funerárias,
lâmpadas votivas e outros objectos fúnebres expostos pelos comerciantes,
decorados quer por peixes e pelo crismon dos cristãos quer pelos velhos motivos
romanos. Nesse aspecto, os negociantes de Bracara Augusta não eram sectários, procurando
agradar aos fiéis da nova e da velha religião.
Quando chegou, inquieto, a casa
de Ithacio, Lucídio foi conduzido a uma sala estreita e escura. Apenas uma vela
dava cor ao esconso lugar. Ao lado, tão-só separado por uma enorme cortina
vermelha da sala do compartimento confinante, ouviam-se vozes de dois homens,
animados numa discussão sobre questões religiosas. Ambos pareciam cristãos, mas
era evidente que estavam em desacordo quanto à natureza daquele a quem chamavam
Cristo, ou melhor, sobre a natureza do laço existente entre Cristo e o Deus que
diziam ser seu Pai. Cristo é consubstancial ao Pai, eterno e incriado! Foi
assim que ditou o concílio de Niceia!, asseverava um deles, de voz fina. Ditou?!
Ora, ora! Essa foi a vontade de Constantino, incapaz de deixar os verdadeiros teólogos
da fé decidirem sobre a Sua natureza. Jesus Cristo é semelhante, mas não consubstancial
ao Pai, como demonstrou, com toda a sabedoria, o presbítero Ário de Alexandria:
homoiousios de
essência parecida, e não homoousius
de igual essência! Amigo, essa tua crença ainda te vai trazer muitos
dissabores! Põe-te a pau, pois os arianistas não são lá muito apreciados por
estas paragens! Andam a difundir a semente da discórdia e da falsidade na Hispânia!
Ainda recentemente, o nosso bom bispo Apolónio referiu-se a vós como as ovelhas
negras do império.
Lucídio reconheceu o verbo
aflautado de Ithacio. Apesar de ser homem pesado, de carnes fartas e flácidas,
a inconfundível voz de falsete conferia-lhe um ar de eunuco que, não obstante,
o dono da Villa Aseconia sabia não ser. Comentavam-se, à boca pequena, as impertinências
do filho mais velho, provocador de vários desacatos, sobretudo durante a noite.
Ora, ora, meu caro Ithacio! Tu é que lavras em erro com as crenças que Atanásio
inventou e que Constantino ordenou em Niceia, sob a influência de Óssio de
Corduba, ainda mais ignorante. Nunca encontrarás a plenitude da verdade teológica,
amarrado a esse terrível engano, sem perceberes que o Filho não é da mesma
natureza do Pai. Calma aí, Severiano! Cuidado com essas afirmações, muito menos
dentro da minha casa! Haja respeito!, gritou o dono, com estridência. A
conversa aqueceu entre os dois que se tratavam por amigos e que centravam o
pomo da discórdia na religião que ambos professavam. Ithacio era partidário dos
nicenos, que acreditavam que o Filho não era da natureza das coisas feitas e
criadas. Para estes, o Filho sempre existiu e junto ao Pai, pelo que eram
inseparáveis. No entanto, defendiam serem Pai e Filho duas pessoas distintas,
sendo o Pai o único que não fora objecto de concepção.
Aliás, esta rebelião religiosa,
que acarretava graves consequências políticas para o império, era uma das
principais preocupações dos imperadores, desde que Constantino decidira
converter-se ao Cristianismo, a seguir à vitória sobre Maxêncio, na Ponte
Milvius, às portas de Roma, a 28 de Outubro de 312. Dizia-se que pretendera
unificar o império através de uma única religião, universal, a cristã, mas logo
se viu atormentado pelas inúmeras discussões e cismas internos. As controvérsias
gravitavam, normalmente, à volta do mesmo tema: a natureza de Jesus Cristo.
Assim, recomeçavam as ameaças à unidade imperial, pois, com um assombroso
furor, as desavenças alastravam e contaminavam as bases do novo poder.
Lucídio conhecia a polémica, pois
os seguidores das antigas tradições usavam-na para se defenderem das acusações
de idolatria e paganismo, dizendo que nem os cristãos se entendiam quanto à sua
crença. Os cultos dos ancestrais, romanos, gregos, egípcios, orientais, não
tinham propriamente um único centro, um chefe, nem uma definição enquanto
religião. Cada um era livre de escolher o seu credo e a forma de o cultivar.
Podia consultar-se um sacerdote, mas seguir ou ignorar os seus conselhos sobre
a forma de invocar a divindade. Cada um utilizava, a seu bel-prazer, palavras,
gestos e até artes, como a dança e o canto, bem enraizados, tanto no campo como
na cidade. A religião a que os cristãos chamavam idolatria era, assim, a crença
na existência de seres naturais inomináveis, na esperança que eles fossem benévolos
e atendessem às orações, excepto aqueles que podiam tornar-se daninhos, através
de invocações mágicas. Mas igualmente a convicção de que um ou muitos deles
protegiam particularmente cada lugar e cada povo, e também a existência de um
conjunto de ritos relativos às esperanças e às crenças da vida que se não
endereçavam a um ser em particular. Mas havia também os cultos místicos
orientais. Muitos romanos, insatisfeitos com as velhas divindades, buscavam a
oriente um deus que os pudesse amar, proteger e garantir a salvação eterna. Daí
o sucesso de Cibele e Dionísio, originários da zona da Frígia, ou de Mitra da Síria
e de Ísis e Osíris, depois Serápis, do Egipto». In Alberto S. Santos, O Segredo
de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN 978-972-068-096-9.
Cortesia
de PEditora/JDACT