sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

A Intriga de Compostela. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «De repente, o torturado de Tui tinha à mercê o seu antigo carrasco, sangrando de um braço e desarmado. Bastava uma estocada do portucalense e a goela de Fernão Peres abria-se»

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A intriga de Compostela 1140-1142
Arcos de Valdevez. Março de 1141
«(…) Um ferimento doloroso faz nascer num homem alguma prudência, mesmo quando ele é um grande guerreiro. Músculos rasgam-se, sangue vermelho escorre, o sentimento de invulnerabilidade esfuma-se e o convencimento da imortalidade sofre um rombo. Até um valente, como Afonso Henriques, anota finalmente o perigo de um dia a Providência lhe falhar. Num confronto perto de Límia, o príncipe de Portugal foi ferido no braço direito por uma lança, o que o incapacitou para continuar a levantar no ar a sua famosa espada, a Tormenta, que deixou cair pela primeira e única vez. Graças a Deus, a mazela não era grave e o único sinal da sua existência foi um trapo a rodeá-la nas semanas seguintes. É certo que o príncipe ficou limitado nos movimentos, mas quem o olhasse nem dava por isso, pois cavalgava como dantes. A prudência foi o único sinal da mudança que aconteceu.
Dias depois, soubemos que os exércitos do imperador chegavam. Recuámos, voltámos a atravessar o rio Minho e fomos esperar Afonso VII perto de Arcos de Valdevez, onde instalámos o nosso acampamento. Entre os portucalenses, havia uma vontade forte de luta em campo aberto, mas apercebi-me de que Afonso Henriques considerava outra hipótese. Foi Chamoa, vinda à pressa de Guimarães logo que soube da ferida, quem me anunciou as novidades. Vai propor um bafordo ao imperador. Para nossa sorte, tal intenção encontrou logo eco em Afonso VII. Nesse invernoso princípio de ano, os dois primos direitos revelaram as supremas qualidades que os haveriam de tornar nos mais célebres monarcas da região durante muito tempo. Os grandes reis são também os que pressentem o momento certo, o tempo da luta e o da paz. Tanto para Afonso VII como para Afonso Henriques, uma confrontação violenta era indesejada. O imperador andava entusiasmado com as invasões da Andaluzia muçulmana, e Afonso Henriques sentira pela primeira vez a dor. Para quê uma batalha se podiam decidir as pendências num torneio?
Entre finais de Fevereiro e os primeiros dias de Março, o que aconteceu, portanto, em Arcos de Valdevez foram jogos de guerra, combates individuais entre cavaleiros e concursos de flechas, que evitaram uma inútil carnificina. Porém, o resultado não foi o previsto pelo arrogante imperador, pois o bafordo terminou com a vitória categórica dos portucalenses. Um a um, os nobres leoneses, castelhanos e galegos foram humilhados pelos ricos-homens do nosso Condado. O irmão de Fernão Peres, Bermudo Peres Trava, foi cilindrado por Gonçalo Mendes Maia, o Lidador, e Peres Cativo vergastou facilmente Rodrigo Velez. Mas o combate que sempre recordaremos com enorme gozo foi o que colocou frente a frente Gonçalo Sousa, o nosso alferes, e Fernão Peres Trava, o odiado galego que fora marido de dona Teresa. O dia da desforra!, anunciou Gonçalo Sousa.
Sentado num palanque, assisti à vingança mais gostosa que ele podia obter depois dos sofrimentos a que o Trava o sujeitara em Celmes e em Tui. Com os anos, Gonçalo Sousa transformara-se num guerreiro admirável, a quem o treino aumentara a perícia e a tranquilidade interior a eficácia, qualidades às quais se somavam um forte carisma e um rabo-de-cavalo excêntrico, que faziam suspirar as mulheres. No passado, mostrara mais força do que tino, mas agora exibia uma frieza implacável. Crescera e aperfeiçoara-se. Montado num cavalo asturiano, cavalgou em direcção a Fernão Peres com a sua lança comprida e derrubou-o à primeira estocada, para gáudio da assistência portucalense. Combalido, o Trava ainda se levantou e ergueu a espada, propondo a continuação da refrega. Aceitai!, exclamei.
Gonçalo Sousa desmontou e aproximou-se lentamente, com o escudo a protegê-lo. Parecia não querer investir à toa, mas mal chegou perto fê-lo com redobrada ferocidade. No seu braço, haviam-se acumulado desejos de retribuição em camadas, que agora se fundiam num poderoso vórtice de energia. Ergueu a espada e vergastou o adversário uma, duas, três, quatro vezes, até que este dobrou o joelho, já cansado. O impetuoso Gonçalo aproveitou: mais um golpe forte, nova ferida, nova queda. Está batido..., murmurei.
De repente, o torturado de Tui tinha à mercê o seu antigo carrasco, sangrando de um braço e desarmado. Bastava uma estocada do portucalense e a goela de Fernão Peres abria-se. Notei no rosto de Gonçalo um desejo brutal, mas as regras do torneio não permitiam matar um adversário indefeso. As condições aceites advertiam mesmo que, em caso de subversão clara, o bafordo seria suspenso e a vitória dada aos cumpridores das normas, mesmo que tivessem perdido os combates. Cuidado!, avisei. Gonçalo ainda hesitou, dividido entre a vingança e a regra. Morte era alegria, mas também derrota. Por momentos, o futuro de Portugal parecia suspenso na espada dele, erguida sobre a cabeça do Trava, cuja expressão de terror era inesquecível. Mortinho de medo.
Esta é a paga pelo mal que me fizeste em Tui, nas masmorras onde me haveis sangrado como a um porco!, ameaçou Gonçalo. Perdoai-me, por favor!, gemeu o aterrorizado Trava». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Intriga de Compostela, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
                                 
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