Coimbra.
Julho de 1117
«(…) Mãe, porque parte o califa?,
perguntou Zaida. Dona Teresa e os irmãos Trava observaram Zulmira. Como se ela,
por ser quem era, soubesse explicar aquela inesperada retirada. Afinal, os
espiões cristãos diziam ser as mouras a principal razão do regresso de Ali
Yusuf, que só viera para satisfazer os pedidos de Taxfin. Contudo, Zulmira manteve-se
em silêncio, profundamente desiludida, pois as suas esperanças num resgate
haviam acabado de se desmoronar.
Ainda zangado, Afonso Henriques
lançou uma provocação vingativa a Fátima, tentando ajustar as contes desfavoráveis
da surra. Afinal, ninguém vos vem salvar! Estranhamente enervada, dona Teresa
voltou a repreender o filho: já vos disse para não vos meterdes com mulheres!
Olhai que ela tinha um punhal!
As crianças cristãs estremeceram,
aflitas, como se a lembrança daquela furtiva lâmina que aparecera nas mãos de
Fátima fosse um subtil sinal de que a imprevista retirada dos mouros não anulava
os tenebrosos perigos do mundo. Já Zulmira permaneceu calada, enquanto Zaida lhe
dava a mão, à procura de protecção maternal, e Fátima mordia o lábio superior,
odiando o universo inteiro.
Desligada daquelas infantis polémicas,
dona Teresa dirigiu-se a Bermudo, que a seguia como um cachorro segue o dono, e
ordenou: levai dez homens convosco e mantende-vos na peugada do califa durante
duas noites, a ver se isto é truque para nos enganarem. Bermudo pareceu
atrapalhado com a pesada responsabilidade. Contudo, confirmou que o iria fazer,
com um aceno de cabeça. Nesse momento, meu pai e meu tio trocaram um olhar cúmplice,
enquanto Fernão Peres Trava sorria, agradado, como me disse depois Raimunda, a
minha prima magricela que se especializara em espiar os outros e que foi a
única que o viu sorrir. Sei bem porque se ri o galego ardiloso, acrescentou.
Naqueles dias, eu ainda não dava
importância especial aos Trava, e apenas fiquei espantado com Afonso Henriques,
que não estava eufórico, como nós, perante a partida do califa e das suas
tropas. Desapontava-o a inexistência de um verdadeiro combate, épico e memorável.
Os mouros retiravam porque queriam. Assim não os podemos vencer, como o meu pai
fazia!, exclamou ele. As crianças só entendem o óbvio, nunca para além dele. No
espírito infantil do meu melhor amigo não se levantara a questão essencial:
porque partia Ali Yusuf sem batalhar? Sabia-se que o califa não estava doente,
como no ano anterior...
Coimbra, Julho de 1117
Muitos anos mais tarde, Abu Zhakaria
acabaria por nos revelar que foi por temor a duas meninas que Ali Yusuf mandou
levantar o segundo cerco a Coimbra. Suspeitava das origens nebulosas de Fátima
e Zaida, e dos segredos inconfessados da sua mãe, Zulmira. Antes de sair de Marraquexe,
o califa ouvira apenas rumores, mas na véspera recebera certezas absolutas e,
contaminado pela insegurança, imaginara um futuro periclitante pera si próprio.
Ali Yusuf era um cobarde, rematou Abu Zhakaria. Mas mandava em nós, e por isso
Taxfin e eu abandonámos Coimbra com ele pela segunda vez, deixando Zulmira,
Fátima e Zaida prisioneiras. Explicou-nos que Taxfin odiava aquele califa, com
aquela barba sempre com gotas de sopa, aquele cheiro enervante a âmbar, aquela voz
áspera, a mania de bater com as alpergatas no chão para matar formigas, a
predilecção feminina pelas pérolas, o turbantezinho ridículo sempre a deslizar
para a esquerda. O governador de Córdova achava-o um fraco, a quem nem o manto
azul-escuro conferia dignidade.
Era a segunda vez que cercava
Coimbra e se acobardava! Taxfin esperara um ano por este cerco, queria resgatar
Zulmira, cuja ausência não suportava! Precisava daquela mão que se fechava na
sua todas as noites, disse-me Abu, sempre poético». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/JDACT