quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Com uma mão trémula, procurou as chaves no bolso. Antes mesmo de tentar introduzir a primeira chave na fechadura, a porta abriu-se. Sustendo a respiração, espreitou para o interior»

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«(…) Jess deixou cair o auscultador no descanso, com um gemido de medo. O sacana divertia-se com aquilo. Pois bem, ela não lhe daria essa satisfação. Olhou de relance para o relógio. Podia partir nessa noite. De imediato. Não havia nada que a prendesse ali um minuto que fosse. Já tinha mesmo encontrado um inquilino para ficar algumas semanas, a tomar conta do apartamento. E, se saísse naquele momento, ainda punha a conversa em dia com Steph antes de a irmã partir para Roma. No País de Gales, estaria segura. Ninguém descobriria o seu paradeiro. Olhou para o telefone móvel. Para aquele número, ele ainda não lhe ligara. Com sorte, não o saberia, mais uma razão para ela pensar que não devia ser Will. Will sabia o seu numero de telemóvel; sabia o endereço de Steph, chegara mesmo a visitar Ty Bran. Sabia tudo o que havia para saber a seu respeito. Não podia ser Will quem andava a atormentá-la. Se fosse ele, estaria perdida. Will adivinharia logo para onde ela tinha ido. Dan era o elo mais fraco do seu plano. A única pessoa que sabia, de facto, para onde ela ia. Ele atendeu-lhe o telefone ao terceiro toque da chamada. Dan, se alguém perguntar, diz que fui para Itália passar o Verão com Steph e Kim, está bem?
Ao ouvi-lo rir, Jess sorriu, sem vontade. Afinal, talvez viesse mesmo a ser verdade. Se Kim não se importasse, era muito possível que ela seguisse Steph. E, pelo sim pelo não, não faria mal nenhum enfiar o passaporte dentro da mala. Fechando-a, deteve-se, à porta. O conteúdo do frigorífico fora arrumado num caixote de cartão e num saco isotérmico; os papéis espalhados sobre a secretária, guardados na pasta de documentos, juntamente com o portátil; por último, as suas duas, ameaçadas, plantas de interior e os materiais e cadernos de esboços que abandonara durante tanto tempo, por falta de oportunidade, já tinham sido postos num outro caixote de cartão.
Cautelosa, abriu a porta e espreitou para o patamar. Já deixara uma chave sobressalente com a senhora Lal, que prometera vigiar o apartamento até o inquilino chegar. O carro estava estacionado a duas ruas de distância dali. Pegando nas chaves que se encontravam sobre o balcão da cozinha, correu pelas escadas abaixo. Ainda era cedo, e as ruas continuavam inundadas de Sol enquanto as pessoas regressavam a casa, no fim do seu dia de trabalho. Jess ouviu ecos de música, sobrepondo-se ao ruído do trânsito, e sentiu o aroma picante e fumarento da came cozinhada no restaurante tandoori, perto da estação de metro.
Alguém, provavelmente a senhora Lal, deixara a porta do prédio fechada no trinco. Hesitando, espreitou para a rua, à esquerda e à direita, e puxou a porta, deixando-a destrancada para a velha senhora entrar, enquanto contornava a praça a correr, à procura do carro. Estava bem apertado, como era hábito, e o tejadilho fora generosamente borrifado com excrementos de pássaro, caídos do plátano por debaixo do qual o estacionara. Com uma manobra minuciosa, conseguiu tirar o carro e conduzir de volta ao apartamento, parando em segunda fila. A porta do prédio continuava aberta. Franzindo o sobrolho, olhou de relance para cima e para o fundo da rua. Não via a senhora Lal, nem nenhum dos inquilinos dos andares de cima. Um bando de rapazes demorara-se na esquina; alguns empreiteiros carregavam escadas e latas de tinta para dentro de uma carrinha; duas raparigas africanas, com vestidos coloridos, dirigiam-lhes risinhos; mais além, conseguia ver um par de mulheres com lenços pretos na cabeça. Não havia ninguém perto da entrada do prédio; ninguém que pudesse ter ido a sua casa. Empurrando a porta com cuidado, perscrutou o átrio. Tudo estava calmo. Subiu a correr, galgando os degraus dois a dois, e parou no patamar do primeiro andar, mergulhado na penumbra, a lâmpada de novo fundida. Olá?, chamou, com nervosismo. Está aí alguém? Não obteve resposta.
Com uma mão trémula, procurou as chaves no bolso. Antes mesmo de tentar introduzir a primeira chave na fechadura, a porta abriu-se. Sustendo a respiração, espreitou para o interior. As malas e os caixotes continuavam alinhados no lugar onde ela os deixara. O apartamento estava em silêncio, mas algo tinha mudado. Estivera ali alguém; sentia-o. Cheirava-o. Fungou. Aftershave. E suor. Will? Não era a marca que Wili usava, mas ele era a única pessoa que Jess sabia que tinha a chave. A menos que ela tivesse deixado a porta aberta. Mas não tinha deixado. Sabia que não tinha deixado. Ou teria? Will, estás aí?, perguntou, com um tremor na voz, toda ela tensa, pronta a fugir. Não houve resposta. Com cautela, espreitou para a sala de estar. Um enorme ramo de flores jazia sobre a mesa de centro. Jess sentiu um baque. Paralisada, como um coelho encadeado pela luz dos faróis, olhou em redor para o resto da sala. Will? A voz tremia-lhe. Não se ouvia um som. Mesmo no seu pânico, ela sentia o apartamento vazio. Will?
Com a boca seca, dirigiu-se a porta do quarto, em bicos de pés. Não encontrou ninguém. A cama impecavelmente feita, as superfícies limpas, os cortinados meio corridos estavam exactamente como ela os deixara. Virando-se, foi espreitar a cozinha e a casa de banho. Ambas vazias. Nada indicava que alguém passara por ali. Os caixotes que deixara à entrada não pareciam mexidos. Quem quer que tivesse entrado no apartamento, durante o curto intervalo de tempo em que ela se ausentara, já se fora embora. Fechando a porta da rua, Jess respirou fundo e aproximou-se do ramo de flores. Um cartão fora metido no meio das pétalas rosadas e azuis dos crisântemos, comprados numa florista, embrulhados com uma fita em papel de celofane cor-de-rosa». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT