quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

A Princesa Guerreira. Barbara Erskine. «Enquanto o velho Ford Ka subia aos solavancos a ladeira que conduzia à casa, Jess espreitou pelo vidro da frente para a pequena herdade da irmã…»

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«(…) Com mãos hesitantes, retirou o cartão e abriu-o.

Nós os dois, que nos comprámos à custa de tantos milhares de suspiros, somos miseravelmente vendidos no mesquinho espaço de um só. Neste momento, o tempo malfazejo, à pressa como os ladrões, entrouxa, desordenadamente, a rica presa que fez; reduz a um só e mísero adeus aqueles outros que, tantos como as estrelas do céu, tinham, um a um, os seus suspiros e os seus beijos; e separa-nos com um breve e faminto ósculo dessaborido com as nossas lágrimas. (In Trólio e Créssida, William Shakespeare)

Obrigado por tudo, bem-haja,
Ash.
Por baixo, escrevinhara:
A porta estava aberta. É triste sentir a tua falta. A x.

Ash estivera no seu apartamento. Não Will. Ash, citando Tróilo e Créssida. Ele devia ter ficado à espreita, aguardando que ela saísse para poder entrar à socapa. Jess fechou os olhos, arrepiada. Levou dez minutos a carregar o carro, descendo e subindo as escadas a correr, com as malas e os caixotes, numa obsessiva atenção aos passeios. Por fim, conseguiu meter tudo lá dentro. Regressando ao apartamento uma última vez, deu uma vista de olhos pela casa, para ver se se esquecera de alguma coisa. Só das flores. Com um esgar de repulsa, pegou nelas e enfiou-as, de cabeça para baixo, no caixote do lixo. Depois, deitou fora o cartão, saiu à pressa, fechou a porta atrás de si, trancou as duas fechaduras e meteu-se dentro do carro. Empurrando os trincos da porta para baixo com violência, afundou-se atrás do volante e respirou fundo várias vezes, para tentar acalmar o pânico. Acabou. Ele não está aqui. Não vai saber para onde vou. Ficarei em segurança. Soprava as palavras em voz alta no momento em que enfiou a chave na ignição e a rodou.

Enquanto o velho Ford Ka subia aos solavancos a ladeira que conduzia à casa, Jess espreitou pelo vidro da frente para a pequena herdade da irmã, que se estendia, aninhada, na encosta arborizada, e sentiu um rasgo de alegria e alívio. O sentimento esmoreceu um pouco quando ela virou para o pátio e desligou o motor. Onde estava o carro de Steph? A casa parecia vazia. Chegara tarde de mais. Steph já tinha partido, caso contrário, por que estaria a porta da rua fechada? Nunca a vira fechada desde que a irmã ali vivia, nem mesmo no Inverno. Jess saiu do carro, dorida das longas horas de condução, e perscrutou o espaço em redor. Contendo um brusco aperto de solidão, foi à procura da chave. Encontrou-a no esconderijo habitual, no alpendre, presa num casulo de teias de aranha, prova da escassez de uso, por debaixo de um vaso de terracota. Quando se curvou para recolhê-la, uma andorinha indignada voou para fora do ninho, oculto na sombra, um pouco mais acima, deixando uma fila de crias rabugentas, ainda incapazes de voar, a querer saltar para fora, debruçadas na borda, fulminando-a com o olhar.
Jess introduziu a chave na fechadura e, rodando-a com dificuldade, abriu a porta e entrou. A casa estava estranhamente silenciosa. Steph era uma mulher sociável. No passado, quando Jess a visitara, deparara-se sempre com uma multidão, artistas e escritores fugindo da cidade, ex-namorados e ex-maridos que se mostravam todos de surpreendentes boas relações com a irmã, colegas da Escola de Arte de West London, onde Steph dera aulas durante dez anos, antes de se afastar para se dedicar à cerâmica, pessoas que ela conhecera em viagem, animais que a seguiam até casa, crianças abandonadas que a mãe recolhera nos seus périplos e conduzira despreocupadamente à quinta da filha, no País de Gales. Enquanto descarregava o carro, começando cautelosamente a explorar a casa que seria o seu reino durante o Verão, Jess esperava ver, a qualquer momento, uma cara sonolenta a espreitar de um dos quartos, um gato vadio, um cordeiro órfão, um artista sem-abrigo. Mas não apareceu ninguém. A casa estava limpa, arrumada e deserta». In Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida, Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.

Cortesia de PManuscrito/JDACT