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«(…) Na mesa da cozinha,
encontrou um bilhete com uma caixa de nougat. Desculpa-me não estar aqui
para te acolher. Aproveita a paz. Fica todo o tempo que quiseres. A sério. Há
vinho no frigorífico. Até breve. S xxx
Escolheu instalar-se no maior
quarto de hóspedes. Nele, havia uma cama de casal com uma colcha de remendos,
uma antiga arca de macieira de pinho e um velho armário francês com um
belíssimo, ainda que puído, tapete afegão sobre as tábuas de carvalho polidas,
muito espaço para os seus livros e uma velha e pitoresca casa de banho,
construída no lugar onde antigamente talvez tivesse existido um outro quarto,
atrás da enorme parede da lareira. Com cuidado, pousou a sua planta mais
pequena, uma exuberante flor-da-fortuna em plena floração escarlate, no
peitoril da janela. A outra, uma língua-de-sogra, oferecida por Will, que mal
escapara com vida à ruptura entre ambos, no tempo em que ela ainda costumava atirar
com coisas, pô-la na casa de banho, divisão com espaço suficiente para acomodar
uma antiga mesinha de toucador, um canapé provecto, que rangia, coberto por um
xaile exótico, e mais uma estante ao lado da banheira de pés.
Vagueou pelo resto da casa, a sala
de estar, com a sua lareira varrida repleta de flores secas, a sala de jantar,
com a sua mesa de refeições, tantas vezes apinhada de convivas a conversar, a
discutir, a fazer barulho. A cozinha de Steph era aventureira e nem sempre
bem-sucedida, muitas vezes, a irmã era salva das suas crises de culinária por
visitantes mais talentosos, que não pareciam importar-se de pôr o avental de
chefe no último minuto. A memória fê-la sorrir, com ternura. Seguiu caminho até
à ampla cozinha à moda antiga, agora estranhamente arrumada, com vista para o
pátio, e depois pelo corredor, com as suas pequenas janelas ogivais,
construídas para se fundirem nas linhas medievais dessa velha, encantadora vacaria
que Steph convertera em estúdio. Parando à entrada, olhou em redor para os materiais
ainda por estrear, arrumados nas estantes, para as peças acabadas de fazer,
cuidadosamente embaladas em caixotes, obras artesanais que Steph vendia através
de galerias em Radnor, Hereford e Hay, para as pilhas de cacos. Odiava ver o
estúdio assim. Deserto, como a casa, com o forno de cerâmica apagado e o lugar
de alguma forma privado da sua alma na ausência da irmã. Demorou-se alguns
instantes, a ouvir os cantos longínquos dos pássaros, e sentiu um arrepio de
frio. Por fim, regressou ao corredor, rodou a chave na fechadura e, abandonando
o estúdio aos seus desígnios, voltou para a cozinha.
Talvez não tivesse sido uma boa
ideia ter vindo, afinal, uma vez que Steph não estava ali. Por que não lhe
dissera logo vem comigo? Vem para Roma. Para o Sol. Jess lançou um olhar
furioso às plantas amontoadas no peitoril da janela, atrás da bancada da
cozinha. A culpa é toda vossa, disse, em voz alta. Vim tomar conta de plantas e
não era, de todo, o que eu tinha em mente! Franziu o sobrolho. O que tinha em
mente era pintar. Esquecer Londres e o que lhe acontecera naquele lugar. Olhar
para o futuro, não para o passado. A ideia animou-a. De repente, mal podia
esperar para abrir o caderno de esboços e sentir, de novo, a dureza tranquilizadora
da pena ou do pincel na sua mão. Queria retratar tudo. Árvores. A silhueta das
colinas. O perfil macio e quente dos muros de pedra. As cores das flores, a
extraordinária composição das pétalas da orquídea, no peitoril da janela. Ia
correr tudo bem.
Nessa noite, o sonho voltou. Jess
estava lá fora, à porta de casa, contemplando, no fundo do pátio, o portão
aberto e a floresta, mais além. Os ramos das árvores estremeciam, e sentia-se
uma tempestade a deslizar pelo amplo vale do rio, abaixo dos campos. A voz,
quando veio, era ténue e trémula. Já podemos terminar este jogo? Estou com
medo. Parecia vir de um ponto incerto no meio da floresta, quase abafada pelo
som das gotas de chuva a tamborilar na folhagem. Onde estás? Jess correu para o
portão. Entra. Vai chover. Vem para aqui, minha querida. Aqui, ficas segura. A
chuva começou a cair com mais força. Jess sentiu-a ensopar-lhe o casaco,
encharcar-lhe o cabelo. Sentiu os seus dedos escorregadios, no cimo do portão,
ao espreitar para o fundo da noite. Onde estás?
Um
relâmpago iluminou o trilho e, ao longe, viu uma criança, o cabelo claro
caindo-lhe em tranças sobre os ombros, o rosto pequeno num esgar de súplica
assim que a escuridão se fechou sobre ela, uma vez mais. Espera. Estou a
chegar! Fica onde estás. Jess começou a correr pelo trilho, os pés
escorregando-lhe na lama quando o primeiro estrondo do trovão ressoou pelas
colinas. Em sobressalto, abriu os olhos. Estava deitada a olhar para o tecto. O
sonho demorou-se um segundo, depois desvaneceu-se, quando ela tomou consciência
do ruído da chuva a martelar nas telhas e nas lajes do pátio por debaixo da
janela. A chuva era real. Como o trovão. Quando um novo ribombar estalou em
redor da casa, Jess sentou-se e estendeu a mão para o interruptor». In
Barbara Erskine, A Princesa Guerreira, 2008, tradução de Catarina Almeida,
Grupo Planeta, Planeta Manuscrito, Lisboa, 2009/2010, ISBN 978-989-657-113-9.
Cortesia
de PManuscrito/JDACT