terça-feira, 22 de janeiro de 2019

As Crianças de Cárquere. Assim Nasceu Portugal. Domingos Amaral. «Leopoldo, ligeiramente embaraçado, não a esclareceu directamente, mas contou que ricos-homens, cavaleiros-vilãos ou até nobres senhoras depositavam em Cárquere meninos e meninas»

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As Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Porém, com quem podíamos falar?, questionou-se ela. Todos os presentes em Astorga, no dia da morte do conde Henrique, estavam mortos. Dona Teresa e dona Urraca, Egas Moniz e Paio Soares, bem como Martinho de Soure, nenhum nos podia esclarecer. É um beco sem saída..., murmurei. Contudo e após esta conversa, durante o funeral de meu pai vi o monge Leopoldo Cárquere, que me estimulou a curiosidade. No final da cerimónia, chamei Chamoa e Teresa Celanova e apresentámo-nos ao desconhecido. Chamoa... Sois filha de Gomes Nunes e Elvira Peres Trava. Conheci ambos em Cárquere..., disse o monge. Os meus pais foram ao mosteiro?, espantou-se Chamoa.
Leopoldo, ligeiramente embaraçado, não a esclareceu directamente, mas contou que ricos-homens, cavaleiros-vilãos ou até nobres senhoras depositavam em Cárquere meninos e meninas que não tinham quem cuidasse deles. Vosso pai fê-lo também, afirmou o monge, olhando para mim. De repente, uma dúvida assaltou-me. Teria Egas Moniz levado a Cárquere uma criança aleijadinha, trocando-a por outra saudável? Seria o verdadeiro Afonso Henriques um órfão do mosteiro? Com um inesperado desagrado a moer-me as entranhas, perguntei quando se dera essa ocorrência e o monge disse que fora logo após a primeira viuvez de meu pai. Egas Moniz foi lá deixar uma menina, contou ele. Ainda lhe perguntei se sabia de alguma troca de meninos, mas infelizmente o monge foi chamado pelo arcebispo João Peculiar e despediu-se de nós sem nos esclarecer. Um beco sem saída, repetiu Chamoa.
Fascinado com a possibilidade de existirem segredos desconhecidos no Mosteiro de Cárquere, comentei: órfáos, filhos ilegítimos e rejeitados. Crianças perdidas... Com educada subtileza, Leopoldo revelara a existência de uma filha bastarda de meu pai, insinuando igualmente que os pais de Chamoa tinham pecadilhos que haviam sido depositados em Cárquere sem alarido. Temos de visitar o mosteiro!, exclamei. Novamente entusiasmados, decidimos que, mal a comitiva real abandonasse Lamego, iríamos até Cárquere, que não ficava longe. Só que tal não foi possível, pois Afonso Henriques exigiu que voltássemos de imediato a Coimbra, onde queria proceder às nomeações de Peres Cativo e de Pêro Pais, como os novos mordomo e alferes do reino.
Preciso de vós, Lourenço Viegas, para acalmar Gonçalo Sousa!, exigiu o rei de Portugal, virando-se depois para Chamoa: e quero-vos junto ao vosso filho, quando o fizer alferes! A ida a Cárquere teve, pois, de ser adiada, mas felizmente por pouco tempo.

Coimbra, Setembro de 1146
A escolha de Peres Cativo para novo mordomo incomodou fortemente Gonçalo Sousa, mas, ao contrário do que esperávamos, este não se demitiu do posto de alferes das tropas portucalenses. Limitou-se a partir de Coimbra, deixando Afonso Henriques num limbo incómodo, impedindo-o de nomear Pêro Pais. Sacana do Sousão!, enxofrou-se Chamoa. Permanecera na corte para defender os interesses do filho, mas não via a ascensão deste consumar-se e a sua irritação cresceu ainda mais quando lhe chegou outra novidade: a rainha Mafalda da Sabóia estava de esperanças. Grávida?, balbuciou Chamoa, quando a informei. Um herdeiro real saltaria de imediato para o primeiro lugar da linha sucessória. Ali estava, em todo o seu esplendor, o azar que dona Justa dizia fustigar Chamoa: o seu Fernando Afonso ia ser ultrapassado.
O meu menino nunca será rei, Virgem Santíssima!
Dias depois, Afonso Henriques foi visitar Chamoa à casa desta. Mafalda da Sabóia estabelecera uma regra implacável: enquanto a gravidez durasse, não podia ser filhada, com receio de perder o rebento. O rei aceitara a dura provação, mas decidira regressar à cama da barregã». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.

Cortesia da CasadasLetras/JDACT