quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Manual para Mulheres de Limpeza. Lucia Berlin. «Fingi que não me importava e, além disso, gostava da cozinha, do riso brando e dos murmúrios das freiras, que usavam hábitos que pareciam camisas de noite artesanais quando ali estavam»

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Estrelas e santos
«(…) Mas depois ouvi guinchos e gritos e uma freira a dizer oh, não, não consigo, e percebi que não faria mal eu entrar porque aquilo que ela não conseguia fazer era tirar os ratos mortos das armadilhas. Eu faço isso, disse eu. E as freiras ficaram tão agradadas que não disseram nada sobre eu estar na cozinha, à excepção de uma delas, que sussurrou a outra: protestante. E foi assim que começou. Elas também me deram uma bolacha, quente e deliciosa, com manteiga. É claro que eu tinha tomado o pequeno-almoço, mas era tão boa que a engoli sofregamente, e elas deram-me outra. Todos os dias, então, em troca de esvaziar e voltar a preparar duas ou três armadilhas, não só recebia bolachas como uma medalha de S. Cristóvão, que usava mais tarde, como senha de almoço. Isto poupava-me à vergonha de, antes de as aulas começarem, me pôr na fila para trocar moedas pelas senhas que usávamos para o almoço.
Por causa das minhas costas, deixavam-me ficar na sala de aula durante a ginástica e o recreio. Só as manhãs é que eram difíceis, porque o autocarro chegava antes de abrirem as portas da escola. Forcei-me a tentar fazer amigas, a falar com raparigas da minha turma, mas em vão. Elas eram todas católicas e estavam juntas desde o jardim-de-infância. Na verdade, eram crianças simpáticas e normais. Eu entrara para a escola fora de tempo; pelo que era muito mais nova, e vivera em acampamentos de explorações mineiras longínquas antes da guerra. Não sabia dizer coisas como gostas de estudar o Congo Belga? ou quais são os teus passatempos? Eu cambaleava na sua direcção e exclamava: o meu tio tem um olho de vidro. Ou: encontrei um urso-de-kodiak morto com o focinho cheio de larvas., Elas ignoravam-me ou riam entre si ou diziam: mentirosa, vai-te crescer o nariz!
Assim, durante algum tempo, tive um sítio para onde ir antes das aulas. Sentia-me útil e valorizada. Mas, depois, ouvi as raparigas a sussurrarem pobrezinha de caridade, juntamente com protestante, e começaram a chamar-me caça-ratos e Minnie Mouse. Fingi que não me importava e, além disso, gostava da cozinha, do riso brando e dos murmúrios das freiras, que usavam hábitos que pareciam camisas de noite artesanais quando ali estavam. É claro que, por essa altura, já tinha decidido que me tornaria freira, porque elas nunca pareciam nervosas, mas, sobretudo, devido aos hábitos pretos e às toucas brancas, aquelas armações para a cabeça que pareciam gigantescas flores-de-lis engomadas. Aposto que a Igreja Católica perdeu muitas candidatas a freiras quando estas começaram a vestir-se de forma banal. Depois, a minha mãe foi à escola, saber como me estava a sair. Elas disseram que o meu desempenho nas aulas era excelente e que o meu comportamento era perfeito. A Irmã Cecília disse-lhe quanto apreciavam ter-me na cozinha e como se certificavam de que eu tomava um bom pequeno-almoço. A minha mãe, sempre snob, com o seu velho casaco carcomido e a sua gola de raposa carcomida e já sem olhos, ficou horrorizada, enojada com os ratos e absolutamente furiosa com a medalha de S. Cristóvão, porque eu continuara a receber as minhas moedas todas as manhãs e a gastá-las em rebuçados depois da escola. Ladrazinha delinquente! Trás. Trás. Horrorizada!.
As coisas acabaram assim, e foi tudo um grande mal-entendido. As freiras, ao que parece, pensaram que eu rondava a cozinha por ser uma pobre desamparada cheia de fome, e deram-me a missão das ratoeiras por caridade, não porque precisassem de mim. O problema é que, ainda hoje, não sei de que modo se poderia ter evitado aquela impressão errada. Talvez se eu tivesse recusado o biscoito?
Foi assim que acabei por passar tempo na igreja antes das aulas e por decidir tornar-me freira, ou santa. O primeiro mistério era que as filas de velas por baixo de cada uma das estátuas de Jesus, de Maria e de José se agitavam e tremeluziam, como se houvesse correntes de ar, embora a igreja estivesse bem fechada e nenhuma das portas pesadas estivesse aberta. Acreditava que o espírito e Deus nas estátuas era tão forte que levava as chamas a agitarem-se e silvarem, trémulas com o sofrimento. Cada pequeno rompante de luz iluminava o sangue acumulado nos pés brancos e ossudos de Jesus, fazendo-o parecer molhado». In Lucia Berlin, Manual para Mulheres de Limpeza, 1977, …, 1999, Penguin Random House, 2016, Alfaguara, 2018, ISBN 978-989-665-065-0.

Cortesia de Alfaguara/JDACT