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Estrelas
e santos
«(…)
Mas depois ouvi guinchos e gritos e uma freira a dizer oh, não, não consigo, e percebi
que não faria mal eu entrar porque aquilo que ela não conseguia fazer era tirar
os ratos mortos das armadilhas. Eu faço isso, disse eu. E as freiras ficaram tão
agradadas que não disseram nada sobre eu estar na cozinha, à excepção de uma delas,
que sussurrou a outra: protestante. E foi assim que começou. Elas também me deram
uma bolacha, quente e deliciosa, com manteiga. É claro que eu tinha tomado o pequeno-almoço,
mas era tão boa que a engoli sofregamente, e elas deram-me outra. Todos os dias,
então, em troca de esvaziar e voltar a preparar duas ou três armadilhas, não só
recebia bolachas como uma medalha de S. Cristóvão, que usava mais tarde, como senha
de almoço. Isto poupava-me à vergonha de, antes de as aulas começarem, me pôr na
fila para trocar moedas pelas senhas que usávamos para o almoço.
Por causa das minhas costas, deixavam-me
ficar na sala de aula durante a ginástica e o recreio. Só as manhãs é que eram difíceis,
porque o autocarro chegava antes de abrirem as portas da escola. Forcei-me a
tentar fazer amigas, a falar com raparigas da minha turma, mas em vão. Elas
eram todas católicas e estavam juntas desde o jardim-de-infância. Na verdade,
eram crianças simpáticas e normais. Eu entrara para a escola fora de tempo; pelo
que era muito mais nova, e vivera em acampamentos de explorações mineiras
longínquas antes da guerra. Não sabia dizer coisas como gostas de estudar o Congo
Belga? ou quais são os teus passatempos? Eu cambaleava na sua direcção
e exclamava: o meu tio tem um olho de vidro. Ou: encontrei um urso-de-kodiak morto
com o focinho cheio de larvas., Elas ignoravam-me ou riam entre si ou diziam: mentirosa,
vai-te crescer o nariz!
Assim, durante algum tempo, tive
um sítio para onde ir antes das aulas. Sentia-me útil e valorizada. Mas, depois,
ouvi as raparigas a sussurrarem pobrezinha de caridade, juntamente com protestante,
e começaram a chamar-me caça-ratos e Minnie Mouse. Fingi que não me importava e,
além disso, gostava da cozinha, do riso brando e dos murmúrios das freiras, que
usavam hábitos que pareciam camisas de noite artesanais quando ali estavam. É claro
que, por essa altura, já tinha decidido que me tornaria freira, porque elas nunca
pareciam nervosas, mas, sobretudo, devido aos hábitos pretos e às toucas brancas,
aquelas armações para a cabeça que pareciam gigantescas flores-de-lis engomadas.
Aposto que a Igreja Católica perdeu muitas candidatas a freiras quando estas começaram
a vestir-se de forma banal. Depois, a minha mãe foi à escola, saber como me estava
a sair. Elas disseram que o meu desempenho nas aulas era excelente e que o meu comportamento
era perfeito. A Irmã Cecília disse-lhe quanto apreciavam ter-me na cozinha e como
se certificavam de que eu tomava um bom pequeno-almoço. A minha mãe, sempre snob,
com o seu velho casaco carcomido e a sua gola de raposa carcomida e já sem olhos,
ficou horrorizada, enojada com os ratos e absolutamente furiosa com a medalha de
S. Cristóvão, porque eu continuara a receber as minhas moedas todas as manhãs e
a gastá-las em rebuçados depois da escola. Ladrazinha delinquente! Trás. Trás. Horrorizada!.
As coisas acabaram assim, e foi tudo
um grande mal-entendido. As freiras, ao que parece, pensaram que eu rondava a cozinha
por ser uma pobre desamparada cheia de fome, e deram-me a missão das ratoeiras por
caridade, não porque precisassem de mim. O problema é que, ainda hoje, não sei de
que modo se poderia ter evitado aquela impressão errada. Talvez se eu tivesse
recusado o biscoito?
Foi assim que acabei por passar tempo
na igreja antes das aulas e por decidir tornar-me freira, ou santa. O primeiro mistério
era que as filas de velas por baixo de cada uma das estátuas de Jesus, de Maria
e de José se agitavam e tremeluziam, como se houvesse correntes de ar, embora a
igreja estivesse bem fechada e nenhuma das portas pesadas estivesse aberta. Acreditava
que o espírito e Deus nas estátuas era tão forte que levava as chamas a agitarem-se
e silvarem, trémulas com o sofrimento. Cada pequeno rompante de luz iluminava o
sangue acumulado nos pés brancos e ossudos de Jesus, fazendo-o parecer molhado».
In
Lucia Berlin, Manual para Mulheres de Limpeza, 1977, …, 1999, Penguin Random
House, 2016, Alfaguara, 2018, ISBN 978-989-665-065-0.
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