quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

O Evangelho Segundo Lázaro. Richard Zimler. «Depois de os meus primos me erguerem, me depositarem sobre um esquife de madeira e me levarem lá para fora, para a luz do sol, apercebo-me de que tinha estado…»

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«(…) Se não conseguir acalmá-la, a Lia consegue...
Antes ainda de acabar o meu pensamento, recordo-me de que a vida da minha mulher terminou há seis anos, no mesmo momento em que começou a da nossa filha. A minha mente identifica igualmente os túmulos dos meus pais num sufocante recôndito da memória que raras vezes visito. Desculpa estar tão fraco, murmuro para a minha filha. Enquanto ela chora, Yirmi tenta acalmá-la com palavras ternas e a seguir inclina-se e beija-me ambas as pálpebras, no que parece ser a sua forma de nos unir aos três, e um gesto de extrema maturidade para um jovem que só se tornou homem há alguns meses. Vindo algures de trás de mim, Yeshua volta a aproximar-se. Coloca a mão sobre a minha cabeça e apoia-a com força, como faz quando pretende curar um padecente. Chegou o tempo das canções, cita ele do Cântico de Shelomoh.
Começa a entoar um cântico e sinto-me fluir na direcção da sua voz, que conheço tão bem como a minha, e, quando ele ergue a mão da minha fronte, sigo a sua ausência para além da fronteira da minha carne. Agora pairo no ar, suspenso pelo som das suas palavras em hebraico e recordo-me do meu pai a contar-me como os antepassados se reúnem à nossa volta quando entoamos os hinos, e... Achas que consegues levantar-te, dodi?
A pergunta de Yeshua faz-me reentrar no corpo. Abano a cabeça, porque não consigo sentir as pernas. Mas agora já sabes quem eu sou?, pergunta ele. Uma recordação tola faz-me sorrir. Por vezes ensinante, outras vezes serpente, sussurro. É uma resposta que inventei quando éramos estudantes, para o pôr no lugar quando ficava cheio de si. Trata-se de um jogo de palavras: hewya significa serpente e hawa ensinar. Esperava que Yeshua risse; em vez disso, fala-me numa voz desanimada. Não, eu sou aquele que te empurrou da muralha para as garras do Senhor dos Céus. Embora talvez... Antes de conseguir completar a frase, os olhos enchem-se-lhe de lágrimas e aperta-me a mão. Consegues perdoar-me por chegar tarde de mais?, pergunta.
Tarde de mais para quê?, interrogo-me.

Depois de os meus primos me erguerem, me depositarem sobre um esquife de madeira e me levarem lá para fora, para a luz do sol, apercebo-me de que tinha estado dentro de uma das grutas escavadas na rocha, mesmo ao lado da estrada, a norte de Anathoth. Yeshua e Miriam, andando lado a lado, encaminham o nosso pequeno grupo para fora da necrópole, em direcção à estrada que leva para sul, para Betânia. Muitas das entradas dos túmulos exibem pão e fruta, que ali foram depositados e que atraem nuvens de moscas vorazes. Quando o meu avô me levanta a nuca para lhe colocar por baixo um pequeno coxim, pergunto-lhe porque me trouxeram para aqui. Então, não te lembras de nada, meu querido neto?, - responde-me. Não, não me parece. O meu filho levanta a palma da mão para me proteger os olhos da luz. Qual é a última coisa de que te lembras, pai?, pergunta-me. De olhos fechados, vejo-me sentado sobre um mosaico onde está desenhado um pássaro, rodeado pelas ferramentas do meu ofício. Estava a reparar o chão do nosso pátio, respondo. Acho que foi hoje de manhã.
O rapaz faz uma careta, como se lhe tivesse dado más notícias. A tia dele, Mia, afasta-o suavemente do caminho. Falamos lá em casa, Eli, diz ela. Por agora, limita-te a descansar. Pelo menos, diz-me quem morreu e de quem era o túmulo onde eu estava». In Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN 978-972-004-854-7.
                                                            
Cortesia de PEditora/JDACT