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«(…) Se não conseguir acalmá-la,
a Lia consegue...
Antes ainda de acabar o meu pensamento,
recordo-me de que a vida da minha mulher terminou há seis anos, no mesmo
momento em que começou a da nossa filha. A minha mente identifica igualmente os
túmulos dos meus pais num sufocante recôndito da memória que raras vezes
visito. Desculpa estar tão fraco, murmuro para a minha filha. Enquanto ela
chora, Yirmi tenta acalmá-la com palavras ternas e a seguir inclina-se e
beija-me ambas as pálpebras, no que parece ser a sua forma de nos unir aos três,
e um gesto de extrema maturidade para um jovem que só se tornou homem há alguns
meses. Vindo algures de trás de mim, Yeshua volta a aproximar-se. Coloca a mão
sobre a minha cabeça e apoia-a com força, como faz quando pretende curar um
padecente. Chegou o tempo das canções, cita ele do Cântico de Shelomoh.
Começa a entoar um cântico e
sinto-me fluir na direcção da sua voz, que conheço tão bem como a minha, e,
quando ele ergue a mão da minha fronte, sigo a sua ausência para além da
fronteira da minha carne. Agora pairo no ar, suspenso pelo som das suas
palavras em hebraico e recordo-me do meu pai a contar-me como os antepassados se
reúnem à nossa volta quando entoamos os hinos, e... Achas que consegues
levantar-te, dodi?
A pergunta de Yeshua faz-me
reentrar no corpo. Abano a cabeça, porque não consigo sentir as pernas. Mas
agora já sabes quem eu sou?, pergunta ele. Uma recordação tola faz-me sorrir. Por
vezes ensinante, outras vezes serpente, sussurro. É uma resposta que inventei
quando éramos estudantes, para o pôr no lugar quando ficava cheio de si.
Trata-se de um jogo de palavras: hewya significa serpente e hawa ensinar.
Esperava que Yeshua risse; em vez disso, fala-me numa voz desanimada. Não, eu
sou aquele que te empurrou da muralha para as garras do Senhor dos Céus. Embora
talvez... Antes de conseguir completar a frase, os olhos enchem-se-lhe de lágrimas
e aperta-me a mão. Consegues perdoar-me por chegar tarde de mais?, pergunta.
Tarde
de mais para quê?, interrogo-me.
Depois de os meus primos me
erguerem, me depositarem sobre um esquife de madeira e me levarem lá para fora,
para a luz do sol, apercebo-me de que tinha estado dentro de uma das grutas escavadas
na rocha, mesmo ao lado da estrada, a norte de Anathoth. Yeshua e Miriam, andando
lado a lado, encaminham o nosso pequeno grupo para fora da necrópole, em direcção
à estrada que leva para sul, para Betânia. Muitas das entradas dos túmulos exibem
pão e fruta, que ali foram depositados e que atraem nuvens de moscas vorazes. Quando
o meu avô me levanta a nuca para lhe colocar por baixo um pequeno coxim,
pergunto-lhe porque me trouxeram para aqui. Então, não te lembras de nada, meu
querido neto?, - responde-me. Não, não me parece. O meu filho levanta a palma
da mão para me proteger os olhos da luz. Qual é a última coisa de que te lembras,
pai?, pergunta-me. De olhos fechados, vejo-me sentado sobre um mosaico onde está
desenhado um pássaro, rodeado pelas ferramentas do meu ofício. Estava a reparar
o chão do nosso pátio, respondo. Acho que foi hoje de manhã.
O rapaz
faz uma careta, como se lhe tivesse dado más notícias. A tia dele, Mia, afasta-o
suavemente do caminho. Falamos lá em casa, Eli, diz ela. Por agora, limita-te a
descansar. Pelo menos, diz-me quem morreu e de quem era o túmulo onde eu estava».
In
Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016, ISBN
978-972-004-854-7.
Cortesia
de PEditora/JDACT