quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Os Filipes. António Borges Coelho. «Ao outro dia, ao amanhecer, os atacantes viram que os portugueses tinham fugido para a serra, seguidos pelos franceses. Então as galés espanholas atacaram os 30 navios ancorados no porto»

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Derrota e sangue
«(…) A 6 de Julho de 1583 aproximou-se da ilha de São Miguel a esquadra do marquês de Santa Cruz: 5 galeões. 2 galeaças, 12 galés, 31 naus grossas, 12 patachos , 15 zavras, 14 caravelas de Portugal, 7 barcas grandes e 8978 soldados espanhóis, biscainhos, italianos e tudescos, 3 terços, 3820 homens do mar,50 cavaleiros particulares, fora a gente de remo de galés e galeaças. Ao todo, 15 000 homens. Participavam também 200 aventureiros portugueses. Filipe I, o prudente, não tinha muita confiança nos soldados lusos.
O marquês de Santa Cruz mandou dizer aos portugueses: se se entregassem, o rei Filipe deixava-lhes os bens e perdoava-lhes. E os franceses da nova armada que viera em favor de dom António podiam ir em paz com as armas e as bandeiras. Manuel Silva mandou fazer uma caravela mas os capitães impediram-lhe a fuga. Tentou o porto de Biscoitos, as mulheres desfizeram os barcos. Na madrugada do dia 26 de Julho de 1583, 4500 infantes, com a companhia dos aventureiros portugueses na frente, desembarcaram na baía de Porto de Mós. Os terceirenses lançaram outra vez as vacas e os bois, uns 600. Não disparem sobre os animais, abram-lhes o caminho. Combateram o dia todo. Ao outro dia, ao amanhecer, os atacantes viram que os portugueses tinham fugido para a serra, seguidos pelos franceses. Então as galés espanholas atacaram os 30 navios ancorados no porto. Não ofereceram resistência. Abriram-se as cadeias de Angra. Durante três dias a cidade foi saqueada.
O juiz e o escrivão do Pico vieram oferecer a ilha ao marquês de Santa Cruz. No regresso, foram mortos pelos moradores. No Faial, onde estavam aquartelados 500 franceses, o capitão da ilha, António Guedes, recebeu as cartas do comando filipino. Meteu-as debaixo do rabo do seu cavalo sem as querer ler e esbofeteou e matou à espada o emissário. O marquês de Santa Cruz mandou degolar António Guedes. Os franceses puderam embarcar e os faialenses foram parar às galés. As ilhas de S. Jorge, da Graciosa e do Pico entregaram-se. O marquês de Santa Cruz mandou queimar a moeda de dom António. Depois voltaram a funcionar na Praça de Angra a forca e o cutelo. Os enforcados perdiam os bens e eram esquartejados. Degolaram Manuel Silva, tirano, matador, roubador, recolhedor de hereges. A sua cabeça ficou exposta na praça. Degolaram outros fidalgos e Amador Vieira, o embaixador de Filipe que se passou para dom António. Enforcaram o juiz de Angra como amotinador, um capitão de infantaria como induzidor, um capitão de companhia, o capitão da fortaleza de São Sebastião e outro capitão de fortaleza, o pregoeiro, um mareante por ir e vir de França com recados, o corregedor Gaspar Gamboa e muitos outros.

Os corações não eram todos uns
A 28 de Agosto ordenaram-se novas festas em Lisboa. Filipe I já estava em Madrid. Nessa noite puseram candeias nas janelas, arderam fogos e dispararam as bombardas, os mosquetes e os arcabuzes. No dia seguinte, na procissão da Sé a São Domingos, participaram todas as Ordens mas os corações não eram todos uns, porque viviam os mais em esperanças de se verem noutro estado. Outros folgavam muito deste tempo presente dando por razões que tínhamos um rei grande senhor e muito poderoso que todos o haviam de temer e que não havia mais de haver ladrões no mar e que o dinheiro que havia de nadar pelas ruas e outras muitas grandezas... Nesse Verão de 1583, conquistadas as ilhas rebeldes, regressou a Lisboa a segunda armada do marquês de Santa Cruz. Arrastava consigo as bandeiras da vitória e a sombra da forca e da degola. Houve novas luminárias e mais uma procissão solene da Sé a São Domingos.
O ódio que os lisboetas devotavam ao marquês de Santa Cruz ficaria bem expresso por ocasião da sua morte, ocorrida a 9 de Fevereiro de 1588, em Lisboa, pouco antes da partida da Invencível Armada. Não foi sentida por ninguém por ser um homem muito cruel para os portugueses... Era o maior chatim e mercador. Deixou 318 000 cruzados em dinheiro de contado fora 50 000 que tinha de renda; e a sua recâmara de tapeçaria, jóias e pedraria; e muitas naus que trazia no mar ao trato. À sepultura não o acompanharam mais que quatro pessoas. Levaram-no de noite a Alcântara, aos Marianos.

Lisboa
A união de Portugal à Coroa espanhola deu a Filipe um novo litoral atlântico, uma frota para ajudar a protegê-lo e um segundo império que se estendia de África ao Brasil e de Calcutá às Molucas. Às nações da Península Ibérica e aos novos territórios coloniais, Filipe I juntava, na Europa do Norte e do Sul, os Países Baixos, a Borgonha, o Franco Condado, Milão, o reino de Nápoles, da Sicília e da Sardenha. Os exércitos e as armadas, a Igreja da Contra-Reforma e o Papa uniam com a força e a doutrina estes territórios desirmanados, muitos deles insurgentes.
Durante os vinte meses de estada de Filipe I, a cidade de Lisboa fez as vezes de capital. Por via marítima e pelos cavalos da posta chegavam as notícias e seguiam os despachos. Em Lisboa reuniu os Conselhos, os embaixadores e o Legado do Papa. Em Lisboa lhe deram a notícia de que fora deposto pelas Províncias Unidas dos Países Baixos. As diferentes seitas calvinistas e luteranas recusavam as leis do Concílio de Trento, o tribunal da Inquisição (maldita) e respondiam à terrível repressão exercida pelo Tribunal dos Tumultos». In António Borges Coelho, Os Filipes, Editorial Caminho, 2015, ISBN 978-972-212-740-0.

Cortesia de Caminho/JDACT