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Os
Reféns. 1147
Lisboa, Outubro de 1147
«(…) No momento desta dolorosa e
inédita separação, ao passar a cavalo perto de nós, Gonçalo Sousa não resistiu a
uma provocação. Já não sei quem é o rei e quem é o usurpador. Apontava para mim
e vi Afonso Henriques cerrar os olhos. Nunca antes um nobre portucalense se
atrevera a insinuar que ele não era o verdadeiro filho do conde Henrique e de dona
Teresa.
Isso dizem os nossos inimigos!,
gritei.
Porém, o antigo alferes não se acanhou.
O imperador duvida, os cruzados duvidam, até os mouros duvidam! É gente a mais
a duvidar, não vos parece, Lourenço Viegas? Irritado, Afonso Henriques
anunciou: depois de tomar Lisboa, convocarei os nobres para os esclarecer. Até lá,
lembrais-vos de quem venceu em São Mamede, em Cerneja, em Ourique e em Santarém!
Com um sorriso cínico Gonçalo ainda ripostou: com a moura, com a galega, com a
francesa. Como podeis ser um bom rei quando gostais mais de estrangeiras?
O meu melhor amigo não lhe
respondeu e deixou Gonçalo Sousa partir, enquanto eu olhava, preocupado, para Hervey
Glanville sabendo que com aquela cisão os cruzados ascendiam a uma posição
ainda mais privilegiada. Na minha terra, matamos os traidores..., provocou o
inglês.
O nosso sensato rer ignorou-o.
Uma punição da debandada teria consequências dramáticas, os nobres de Entre
Douro e Minho eram gente essencial, não podia dar-se ao luxo de os empurrar para
o regaço de Afonso VII e do Trava. Desconfiam de vós, escarafunchou Glanville. Olhei-o
com crítica frieza, mas o rei não se acanhou: paguei a nova torre, estou à
espera de que a usem! O anglo-normando alegou ligeiros atrasos, madeiras e pregos
em falta. Depois, insistiu na malícia, olhando para nós. Um safado. Corre por
aí que fostes trocados em crianças... O sempre pacificador Cristiano Gistelles,
que entretanto também chegara, lembrou os avisos de Bernardo Claraval. Os
intriguistas queriam manchar a reputação do rei, mas o abade de Cluny avisara
que não lhes déssemos ouvidos! Só quem tinha passado em Compostela, como
Glanville, se contaminara pela desconfiança.
Pela minha parte, tolices dessas
não se promovem, antes se sepultam!, garantiu Cristiano Gistelles, que viera
informar-nos de que a sua mina acabara de explodir. Dirigimo-nos para o lado
oriental, onde soubemos que alguns soldados já entravam por uma brecha na
muralha. Por momentos, acreditámos no fim do cerco, mas em pouco tempo essa
crença esfumou-se. Os habitantes defendiam-se atrás de barricadas altas e
impediam o avanço dos cruzados. Desalentado, Cristiano Gistelles concedeu que, perante
tão forte resistência, a iniciativa passaria para os anglo-normandos, o que
levou Pêro Pais a comentar, irritado: estamos nas mãos do bobo inglês...
No dia seguinte, a desejada torre
de assalto entrou em acção. Desde o nascer do Sol que os trabucos massacravam
as muralhas ocidentais, mas quando a nova estrutura surgiu, uma forte emoção
invadiu-me. É desta!, gritou Gualdim Pais. Com vinte e tal passos de altura,
três pisos e dezenas de arqueiros e besteiros lá em cima, a máquina foi-se
aproximando da muralha, empurrada por centenas de homens, enquanto outros
molhavam os couros que a revestiam. Deus queira que não pegue fogo!, lembrou
Pêro Pais. Uma saraivada constante de flechas e pedras, lançadas a partir da
torre, foi vergastando os inimigos, que, perante a visão daquele dragão
invencível, reforçaram os locais atingidos. O dia passou-se assim, mas com a
chegada da noite uma evidência impôs-se: a torre não conquistara um palmo e o
cansaço fazia a sua aparição. Frustrado e vendo que a maré subia, Glanville fez
recuar as tropas e ordenou que duzentos cavaleiros e arqueiros permanecessem na
torre, para a defender. Nós vamos ficar!, declarou Pêro Pais. Era uma operação
de risco elevado. Com a subida das águas, a estrutura separava-se do grosso dos
exércitos, não podendo ser ajudada por terra, o que obrigava os que lá pernoitariam
a uma vigília permanente e a uma provação feroz». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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