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As
Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Uma semana mais tarde, os
quatro carregaram um barco com tecidos e partiram de Montemor. Desceram a costa
para sul e, após virarem o último cabo, rumaram ao rio Arade, que subiram até perto
de Silves. Cuidado, avisou Ília, ao meter um pé em terra firme. Mem devia
permanecer no cais fluvial, ou mesmo escondido no barco, pois os soldados de Qasi podiam reconhecê-lo. Tendes
razão..., rnurmurou o almocreve. Pouco depois, Ália, Élia e Ília entraram na
cidade, decididas a dar nas vistas com a venda de tecidos. E o estratagema resultou.
Tão alegres e coloridos eram os padrões exibidos que foram chamadas ao palácio,
para mostrar à princesa os alifafes, as túnicas e os mantos. Tentai convencê-la
a vir, pediu Mem. A meio da tarde, as três irmãs foram levadas à presença de
Zaida. Teriam de ficar a sós com ela, durante as provas dos vestidos, pois só
aí lhe poderiam revelar porque ali estavam.
E assim foi. Viram-na,
cumprimentaram-na e despiram-na, para melhor a vestirem com alifafes
transparentes. E só nesse momento de intimidade feminina a abordaram. Princesa,
viemos com Mem, disse Ília. Espantada, Zaida franziu a testa. Com quem?,
perguntou. Desconfiada, olhou-as demoradamente, enquanto apreciava as vestes.
Eram belas, bom tecido, bom corte. Como as que Mem vendera, no passado, à sua mãe,
Zulmira. Contudo, um passo em falso podia perdê-la, o marido vigiava-a
fortemente. Mem..., murmurou,
como não se lembrasse. É filho de quem? Poucos conheciam a história, mas Ília
recordava-se. O pai do almocreve fora degolado pelo mesmo assassin que
matara a mãe de Zaida, um facínora enviado pelo antigo califa almorávida Ali
Yusuf. Satisfeita com o esclarecimento, a princesa perguntou: ele está bem?
A tensão das moçárabes desanuviou-se
e desataram a língua. Mem era agora cavaleiro portucalense, o rei de Portugal oferecera-lhe
as ruínas de Almourol, que ele tentava restaurar. Mas só pensava nela, dizia
sempre às amigas que um dia casaria com Zaida! Casar comigo?, espantou-se a
princesa. Abanou a cabeça, afirmando que isso nunca iria acontecer. Ela era
esposa de Ibn Qasi e ele almocreve, além de muito dado às mulheres. Isso é verdade!,
riram-se as moçárabes. Franzindo o sobrolho, Zaida interrogou-as: Com as três? As
moças gabaram Mem, um portento de homem. Aliás, adiantou Ília, não as filhava
só a elas, mas também à barregã real, Chamoa, que recentemente partira para
Tui, por ordem rainha Mafalda da Sabóia, depois de esta a apanhar a ser filhada
pelo rei de Portugal.
Quanta anirnação..., murmurou
Zaida. Comparada com aquele rebuliço, a sua vida em Silves era de uma penúria
atroz. O marido mantinha o harém, mas ela sufocava com os véus, as regras e as
rezas. Pensar noutro homem era o mesmo que condená-lo à morte. Nem sequer posso
ir ao cais! Zaida só podia sair do palácio na companhia do marido. Os
religiosos espreitavam em cada esquina e Silves era um ninho de denúncias. Se
desejardes, Mem pode vir aqui, sugeriu Ília. A princesa recusou. Nem pensar,
Mem jamais sairia vivo do palácio. Silves mudara e ela também. A opressão
almóada roubara-lhe a jovialidade, o sorriso, a alegria e a liberdade. Nunca me
deixarão usar estas roupas...
Pesarosa, Zaida devolveu às
moçárabes os alifafes e as túnicas, no preciso momento em que a porta da sala
se abriu e surgiu Ibn Qasi. Princesa!, exclamou ele. Disseram-me que três mulheres
andavam por Silves a vender roupa indecente! Já estão de saída, tranquilizou-o
Zaida. Não vou comprar nada. O marido exigiu que as moçárabes lhe mostrassem as
vestes. Mal notou as transparências, explodiu: roupas destas são proibidas pelo
Corão! Zaida ainda relembrou que Silves era uma cidade habituada a costumes
mais tolerantes do que a religiosa Tinmel, o coração da fé almóada. Mas de nada
lhe valeu. Isso acabou!, gritou Ibn Qasi. O Corão é só um! Furibundo, o sufi
quis saber quem eram as desconhecidas e as três moçárabes obviamente
mentiram-lhe. Negociavam em Lisboa e em Alcácer, mas não em Badajoz ou Beja,
pois não confiavam em Ibn Wasir.
E vendeis roupa a cristãos7 -
perguntou-lhes Ibn Qasi. Ainda arrependido do acordo que fizera anos antes com Afonso
Henriques, o sufi vivia na ânsia de provar aos almóadas que não iria repetir
tal enormidade. Odiamos essa canalhada!, garantiram em coro as três manas. Mesmo
assim, Ibn Qasi proibiu-as de negociarem quaisquer vestidos em Silves ou
Mértola, pois não admitia que as mulheres da sua taifa se apresentassem com
indecências. As três raparigas deviam partir imediatamente para norte, antes de
as leis dos almóadas serem impostas também em Lisboa, Santarém ou Álcacer. Já
não falta muito para esse dia chegar!, profetizou Ibn Qasi.
As moçárabes recolocaram os
vestidos nas sacas e Zaida preparava-se para as acompanhar, mas o marido
mandou-a ficar junto dele. Surpreendida, a princesa perguntou: que temeis? Vou
só despedir-me. Irritado, Ibn Qasi colocou-se à frente dela: fazei o que eu
mando ou... De cabeça baixa, Ália, Élia, e Ília, abandonaram o local depressa,
deixando para trás uma silenciosa e triste princesa. Chegadas ao cais,
relataram a Mem o que se passara. Temos de partir já, defendeu Ília. Consciente
de que nada mais podia fazer, o desiludido almocreve aceitou regressar a
Coimbra.
Se o presente é escuro, põe a
cabeça no futuro.
Quando o revi, em Dezembro, Mem
continuava frustrado. Ibn Qasi é um monstro! Eu devia raptá-la!» In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017,
ISBN 978-989-741-713-9
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