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As
Crianças de Cárquere. 1146
Lamego, Agosto de 1146
«(…) Meus pais haviam-se dedicado
durante anos à saúde do menino que, por obra e graça de Nossa Senhora, se
curara dos tormentos! Por isso, Dordia Viegas, minha mãe, falava num milagre, e
por isso meu pai construíra uma capela em Cárquere, para celebrar com júbilo
eterno as melhoras de Afonso Henriques. Que loucura..., murmurou Egas Moniz,
desolado. Em silêncio, pedi perdão a Deus por continuar a duvidar, mas tinha de
expulsar os demónios que me assolavam. Em Cluny, Bernardo de Claraval
perguntou-vos se eu era o primeiro dos vossos filhos. Porquê? Egas Moniz
estendeu a sua mão e tocou na minha, murmurando: Lourenço Viegas... A sua voz
calou-se, mas, apesar da minha forte emoção, prossegui: sou eu o verdadeiro
Afonso Henriques? O que nasceu aleijado? É ele o vosso filho saudável?
Uma lágrima desceu pelo canto do
olho direito de meu pai, que soluçou antes de dizer: Lourenço Viegas, não
acrediteis nessa patranha! Vós sois meu filho e Afonso Henriques é filho do
conde Henrique e de dona Teresa! Num esforço titânico, insisti: Bernardo de
Claraval afirmou que todos os homens tinham segredos, incluindo o conde
Henrique! Cada vez mais triste, Egas Moniz jurou não saber a que se referia o
abade de Cluny. Mas, como a minha inquietude não cessava, recordei que, após o
massacre dos templários, em Soure, meu pai havia defendido um ataque imediato a
Santarém.
Era vosso desejo que o pároco dos
templários morresse? Pálido e infeliz, o meu progenitor ignorou a pergunta e declarou
que, durante trinta e sete anos, protegera Afonso Henriques, contra tudo e
contra todos. Por ele, enfrentara dona Teresa e os Trava, dona Urraca e o
arcebispo Gelmires, os mouros e o imperador Afonso VII. Aquele príncipe era um
predestinado, sempre o soubera, e por isso fora o seu escudo protector, o seu
fiel conselheiro! Protegei-o também, Lourenço Viegas. São muitos os que lhe
querem mal, terminou meu pai, antes de se calar, abatido pelo esforço violento que
lhe exigira a nossa conversa. Nessa mesma noite, Egas Moniz entregou a alma a
Deus, e, dois dias depois, já os convidados tinham chegado, mas ainda antes da missa,
Teresa Celanova chamou-me à parte e revelou-me os seus receios de viúva. Vosso pai
deixou este testamento. Era um pergaminho mais longo do que os habituais, que li
lenta e atentamente. Nada me espantou, excepto um curto parágrafo, onde Egas Moniz
determinava que, caso Teresa Celanova fosse raptada e obrigada a casar, nenhuma
das propriedades da família lhe seriam atribuídas. Meu pai tinha medo de quem?,
perguntei.
O casamento por rapto era um
costume ancestral dos visigodos, mas tornara-se uma raridade no Condado Portucalense.
Aquela inesperada cláusula visava impedir que um homem ficasse na posse dos territórios
da família Moniz de Ribadouro depois de raptar Teresa Celanova. Egas Moniz temia
o imperador, confessou esta. Em jovem, fui amiga de Afonso VII. Alarmado perguntei-1he
de chofre: Ainda o amais! Ela mirou-me, chocada. Mas recuperou depressa: claro que
não, Lourenço Viegas! Sempre amei vosso pai. Era ainda nova quando Afonso VII me
galanteou, mas hoje sei o quanto deseja destruir Afonso Henriques! Além de bonita
e dotada para as lides domésticas, Teresa Celanova possuía um carácter firme e um
coração bondoso e não me deixou dúvidas sobre as suas intenções. Que fareis, se
ele vos vier raptar?, perguntei.
Nossa Senhora, mato-me antes que
o consiga!, exclamou ela. Obviamente, essa era uma possibilidade remota, mas Teresa
avisou-me de que as artimanhas de Afonso VII não iriam parar. Ela ouvira a minha
conversa com Egas Moniz. Acreditais no que meu pai disse?, perguntei. Teresa Celanova
suspirou. Custava-lhe duvidar do defunto marido, mas também não dissipara as suspeitas.
Não sei qual é o segredo, mas há um!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Oficina do Livro, Casa das Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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