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Keter
«(…) Decidi prosseguir. Saí da igreja dobrando à
esquerda junto à estátua de Gramme e entrando por uma galeria. Estava na secção
de caminho-de-ferro, e as miniaturas de locomotivas e vagões me pareceram tranquilos
brinquedos, trechos de uma Bengodi, de uma Madurodam, de uma Disneylândia em
tamanho reduzido... Agora já estava me habituando àquela alternância de
angústia e confiança, terror e desencanto (não se trata de facto de um início
de doença?) e pensei que as visões da igreja me haviam perturbado porque
chegara a elas seduzido pelas páginas de Jacopo Belbo, que as decifrara à custa
de tantos volteios enigmáticos, e que no entanto sabia fictícios. Estava num
museu da técnica, dizia para mim, estás num museu da técnica, uma coisa
honesta, talvez um pouco obtusa, mas num reino de mortos inofensivos, sabe como
são os museus, ninguém jamais foi devorado pela Gioconda, monstro andrógino,
Medusa só para estetas, e muito menos serás devorado pela máquina de Watt, que
só podia espaventar os aristocratas ossiânicos e neogóticos, e por isso surge
assim tão pateticamente comprometedora, todas as funções e elegâncias
coríntias, manivela e capitel, caldeira e coluna, roda e tímpano. Jacopo Belbo,
embora distante, estava procurando arrastar-me na trampa alucinatória que o
havia perdido. É preciso, eu dizia, comportar-me como um cientista. Porventura
o vulcanólogo queima-se como Empédocles? Frazer fugiria perseguido no bosque de
Nemi? Ora, tu és o Sam Spade, não é mesmo? Deves explorar apenas os bas-fonds,
é mister. A mulher que te conquistou deve morrer antes do fim, possivelmente
pela tua mão. Adeus, Emily, tudo foi bom, mas eras um autômato sem entranhas.
Ocorre porém que a galeria dos transportes vai
desembocar no átrio de Lavoisier, fronteiro à grande escadaria que leva aos
pisos superiores. Aquele conjunto de redomas, aquela espécie de altar alquímico
ao centro, aquela liturgia de civilizada macumba setecentista, não eram
resultantes de uma disposição casual, mas antes um estratagema simbólico. Em
primeiro lugar, a abundância de espelhos. Se há espelho, é estágio humano
quereres ver-te nele. Mas nestes não te vês. Tu te procuras, buscas a tua
posição no espaço na qual o espelho te diga estás aqui, e és tu mesmo, e acabas
danando-te todo, te aborrecendo, porque os espelhos de Lavoisier, sejam
côncavos ou convexos, te desiludem, escarnecem de ti: arredando-te, tu te
encontras, mas depois te deslocas e te perdes. Aquele teatro catóptrico fora
disposto para tolher-te toda a identidade e fazer com que te sintas inseguro do
teu lugar.
Como se te dissesse: não és o Pêndulo nem estás no lugar
do Pêndulo.
E te sentes não apenas inseguro de ti mas igualmente dos
objectos colocados entre ti e outro espelho. É verdade que a física sabe o que
é e porque isso ocorre: basta colocar um espelho côncavo que recolha os raios
emanados do objecto, neste caso um alambique sobre uma panela de cobre, e o
espelho reenviará os raios incidentes de modo que não vejas o objecto, bem
delineado, dentro do espelho, mas tenhas dele uma intuição fantomática,
evanescente, a meio-termo, e invertido, fora do espelho. Naturalmente bastará
que te movas um pouco para que o efeito desvaneça. Mas, de repente, me vi,
invertido noutro espelho. Insustentável.
Que pretendia dizer Lavoisier, que buscariam sugerir os registos do
Conservatoire? Desde a Idade Média árabe, desde Al-Hazen, que conhecemos todas
as magias dos espelhos. Valia a pena fazer a Enciclopédia, e o Século das
Luzes, e a Revolução, só para afirmar que basta flectir a superfície de um
espelho para se precipitar no imaginário? E no caso do espelho normal, não será
igualmente ilusório este outro que te olha de dentro, condenado a um mancinismo perpétuo todas as
manhãs quando te barbeias? Valeria a pena dizer-te apenas isto, nesta sala, ou
não o teria dito para sugerir-te que observes de maneira distinta todo o resto,
as vitrinas, os instrumentos que simulam celebrar os primórdios da física e da
química iluminista? Máscara de couro para protecção do rosto nas experiências
de calcinação. Mas, de facto? Será mesmo que o senhor dos círios se enfiava
naquela fantasia de rato de cloaca, naquele capacete de invasor ultraterreno,
apenas para não irritar os olhos? Oh, how delicate, doctor Lavoisier. Se queria estudar a teoria cinética dos gases, para que
haveria de reconstituir tão minuciosamente a pequena eolípila, um canudinho
sobre uma esfera que, aquecida, roda vomitando vapor, quando a primitiva
eolipila foi construída por Héron de Alexandria, no tempo da Gnose, como
subsídio para as estátuas falantes e outros prodígios dos sacerdotes egípcios?»
In Umberto Eco, O Pêndulo de Foucault, 1988, tradução de José Barreiros, Sicidea
(Difel), 2008, ISBN 978-846-125-726-3.
Cortesia de Sicidea/Difel/JDACT