Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…)
As únicas ocasiões em que ela se deixava ficar desse
jeito era quando estava sozinha ou
precisava afugentar algum homem inconveniente. Ao chegar no trecho de
acostamento, Aomame olhou ao redor procurando a escada. Logo a encontrou. Assim
como o motorista a precavera, logo na entrada havia um portão trancado e uma
cerca de ferro da altura da cintura. Pular a cerca de minissaia era um pouco
inconveniente, mas, desde que não se importasse com os olhares alheios, não era
tão difícil. Sem titubear, tirou os sapatos e os guardou dentro da bolsa. Andar
descalça certamente estragaria as suas meias finas, mas isso era o menos,
depois poderia comprar outras. As pessoas, em silêncio, observaram Aomame tirar
os sapatos e, em seguida, o casaco. Da janela aberta de um Toyota Celica preto,
parado bem à sua frente, a voz aguda de Michael Jackson soava como música de
fundo: Billie Jean. Ela se imaginou num palco de striptease. Tudo
bem. Olhem à vontade. Vocês devem estar entediados com esse congestionamento,
não é? Mas, senhoras e senhores, saibam que não vou tirar mais nada. Por hoje,
somente os sapatos e o casaco. Sinto muito, pensou. Aomame colocou a bolsa a
tiracolo para evitar que caísse. O novíssimo Toyota Crown Royal Saloon em que ela
estivera momentos antes permanecia a uma certa distância. Com o reflexo da luz
do entardecer, o para-brisa reluzia ofuscante como um espelho, impossibilitando-a
de ver o rosto do motorista. No entanto, ela tinha certeza de que ele a observava.
Não se
deixe enganar pelas aparências. A realidade é sempre única. Aomame inspirou e expirou o ar profundamente. E, ao som de Billie
Jean, pulou a cerca de ferro. A minissaia subiu quase até a cintura.
E eu com isso, pensou. Se querem ver, vejam à vontade. Isso não significa que
conseguirão ver quem eu sou. Além disso, as suas belas pernas esguias eram a
parte do seu corpo de que mais se orgulhava. Assim que pulou a cerca, Aomame
ajeitou a minissaia, bateu as mãos para limpar a poeira, vestiu novamente o
casaco e ajeitou a bolsa. Por fim, apertou a ponte dos óculos de sol contra a
base do nariz. A escada de emergência estava diante dos seus olhos. Era de ferro
e pintada de cinza. Uma escada que atendia às características de simplicidade e
funcionalidade. Não era uma escada apropriada para uma mulher descalça, de
meia-calça fina e minissaia. Junko Shimada certamente não havia desenhado
aquele conjunto de blazer e minissaia imaginando que seria usado nas escadas de
emergência de uma via rápida. Um caminhão de grande porte passou do outro lado
da pista fazendo balançar a escada, e o vento assobiava ao passar por entre os
vãos da armação de ferro. Enfim, a escada estava diante dos seus olhos. Agora
era só uma questão de descê-la.
Porém, antes de descer, Aomame
virou-se para dar um último olhar na
interminável fila de carros, da esquerda para a direita e da direita para a
esquerda, com a postura de quem acabou de proferir uma palestra e aguardava em
pé, no palco, as perguntas da plateia. Os carros continuavam na mesma posição
como que estacionados. As pessoas, confinadas ali e sem terem o que fazer,
apenas a observavam, curiosas, possivelmente indagando o que aquela garota
afinal estaria fazendo. Do outro lado da cerca, olhares que mesclavam
curiosidade, desinteresse, inveja e desprezo convergiam na sua direcção. Os sentimentos
dessas pessoas oscilavam como uma balança instável, impossibilitados de pender
para um único lado. Um silêncio pesaroso pairava no ar. Ninguém ergueu o braço
para fazer perguntas (e, mesmo que alguém as fizesse, Aomame não tinha intenção
de respondê-las). Elas aguardavam em silêncio uma oportunidade que jamais
teriam. Aomame contraiu um pouco o queixo, mordeu o lábio inferior e, através
das lentes verde-escuras dos óculos, lançou um rápido olhar ao redor. Com
certeza eles nem imaginam quem sou, para onde vou e o que pretendo fazer, pensou
ela, sem mover os lábios. Estão presos aqui, impossibilitados de ir para
qualquer lugar. Não podem avançar nem sequer voltar atrás. Mas eu não. Tenho um
trabalho a fazer. Uma missão a cumprir. Por isso, peço licença a todos para
seguir em frente. Por fim, sua vontade era de fechar a cara para os que ali estavam, mas tentou controlar o ímpeto. Não
tinha tempo a perder. E, uma vez de cara fechada, demorava muito para que
voltasse ao normal. Aomame ficou de costas para os espectadores silenciosos e,
sentindo a rugosidade e a frieza do ferro na planta dos pés, começou a descer
as escadas de emergência com passos cautelosos. Os ventos gelados do início de
Abril balançavam os seus cabelos e, de vez em quando, deixavam à mostra a sua
orelha esquerda assimétrica». In Haruki Murakami, 1Q84, 2009, Casa das
Letras, 2011, ISBN 978-972-462-053-4.
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