«(…) A doçura das margens do
Loire, a palidez triste das planícies do norte foram conciliadoras. Vergaram-se
sempre, docilmente, à rima. Mas como se adaptará Villon à rudeza escaldante das
pedras, a esta luz brutal e sem compromisso? François apruma-se, enfrentando o
rutilar do sol, sentindo o vento quente assar-lhe as faces. É uma provocação
que o arrebata. Colin avança à frente, sobrepujando de pelo menos uma cabeça árabes,
genoveses e persas. Dir-se-ia um pavão atravessando um pátio de galinhas.
Penetra ao acaso numa ruela inundada de turbantes e de elmos. François pega no
bornal e alcança-o a passo de corrida. Dá com ele a discutir já o preço de duas
éguas com um nómada intratável que não para de sacudir a cabeça numa recusa exasperada.
Colin gesticula, procurando um
movimento do braço que signifique abatimento. O nómada não se demove, apontando
obstinadamente no ábaco a quantia que reclama. Enquanto Villon sorri com ar
ameno e tenta mostrar-se cativante, Colin torna-se bruscamente ameaçador e
debruça-se de toda a sua altura sobre o pobre mercador. O preço desce. Colin e François
escolhem as selas. Estas estão bordadas de motivos variados, tecidos e
coloridos pelas mulheres do deserto. Colin ordena ao alquilador que corte os tufos
de lã entrançada que pendem dos arreios. Villon apressa-o nervosamente, aconselhando-o
a não se demorar. Formou-se um ajuntamento à volta do vendedor enfurecido pela falta
de boas maneiras dos estrangeiros. Estava disposto a ceder-lhes as bestas por
um preço muito inferior ao que eles acabam de lhe pagar. Não é essa a questão. Mas
o modo como negociam! É necessário dar tempo ao tempo, parlamentar, desdenhar, choramingar,
ameaçar e a seguir aceder, como querem os usos. O público aquiesce, indignado.
Colin e François sobem para as montadas
de um salto, e, fendendo a turba e a sua vaga de injúrias, avançam direitos à saída
da cidade. Pagam o direito de passagem, deixam para trás a ronda sem percalços,
descobrem à sua frente uma planície árida que se desdobra a perder de vista. Villon
consulta o mapa que o noviço genovês lhe entregou. O sol está ainda alto. Poderão
cobrir a distância antes do cair da noite. Atravessando a galope dunas e charnecas,
os dois homens atingem as primeiras vertentes da Galileia. Colin cavalga na dianteira,
evitando os caminhos batidos e os pequenos povoados, voltando-se amiúde para
inspeccionar as cristas em redor. As lazãs estão babadas de fadiga. Vai ser
necessário parar, procurar uma fonte. Do fundo de um olival, um camponês árabe
observa aqueles cavaleiros que fazem assobiar o silêncio e se afastam velozmente
no meio de uma nuvem de poeira. Espera que assente a última cortina de pó antes
de se absorver de novo nas corveias da terra. Tenta não pensar mais no assunto.
De que lhe poderia servir fazê-lo? E todavia, uma pequena parte do seu ser continua
a cavalgar com eles, secreta, como que arrancada pelo vento.
Colin faz subitamente um sinal de
alto. Poisa um dedo nos lábios. Um murmúrio longínquo, sacudido, aflora os tímpanos.
Um turbilhão de areia sobe por cima das moitas que debruam o vale. Aparece uma tropa
de soldados mamelucos. As suas lanças esguias, firmadas nas esporas, dir-se-iam
as antenas de um enxame de abelhas. Cintilam brilhos luminosos nos tons de
cobre dos cones dos seus elmos. Apesar da distância, Colin e François
apercebem-se de que o destacamento toma pelo sulco que eles próprios acabam de
traçar entre as sarças. Sem uma palavra, os dois homens correm a toda a brida na
direcção das colinas.
Ao
fim da tarde, aproximam-se do ponto assinalado pelo seu mapa. Parece a Provença,
grita Colin erguendo a voz acima do som dos cascos. Não podias dizer melhor.
Olha, ali em cima! Uma cruz recorta-se no céu. Por Deus, sim, versejador, a nobre
cruz de Cristo! Colin abranda imediatamente o trote. Endireita-se, bem alçado, na
sela e começa a sacudir o pó do seu traje. François imita-o. Tomam os dois um ar
de notáveis apesar do calor asfixiante e atacam bravamente a ladeira íngreme
que parece levá-los na direcção das nuvens. Chegados ao alto do promontório, descobrem
um corpo de edifícios em mau estado. À entrada, com os braços cruzados, um homem
aguarda. À volta dele, saltitam galinhas famélicas, que trocam bicadas, fazem alarido
e cacarejam». In Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel
Serras Pereira, Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN
978-989-724-237-3.
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