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A
Criada do conde Henrique. 1147
Coimbra,
Outubro de 1147
«(…)
Lisboa, Outubro de 1147
Ouvi à minha volta berros e senti que algo me queimava.
Era a minha dalmática a arder e despi-a, num frenesim assustado. Depois,
sacudi-me e rebolei pelo chão até chocar com Giraldo, que, também deitado e
agarrado aos olhos, gritava: Pu… da bruxa cegou-me! Só aos poucos me apercebi
do que se passara. Surgiu gente à minha volta: Chamoa, Zaida, Mem. Depois, vi o
rei de pé. Chamuscado nas barbas e nos cabelos, Afonso Henriques já dava
ordens. A Raimunda fugiu!, informou Chamoa. A reles víbora lançara cinco bolas
de fogo, duas contra o rei e três para criar espaço à sua volta, uma roda de
chamas que afastou os soldados. Aproveitando a confusão, correra na direcção da
mina que os flamengos tinham aberto há dias. Vamos atrás dela!, gritou Mem. Embora
me doessem os olhos e os ouvidos, desatei a correr, seguindo o cavaleiro de
Almourol. Entrámos no subterrâneo juntos e avançámos, na companhia de alguns soldados
com archotes. Mas por mais que a procurássemos, não a encontrámos. Foi para a
cidade, disse Mem. No final do túnel, já no interior de Lisboa e junto à Cerca
Moura, vimos um grupo de guerreiros sarracenos, que nos mirava sem saber o que
fazer. A manhã nascia, Lisboa cobria-se de uma nova luz, os cinzentos das casas
tornavam-se mais claros, quase brancos. Os combates estão suspensos, relembrei.
Não podemos entrar na cidade, é esse o acordo com os mouros. Irritados, demos
meia-volta. A esperta bruxa escapara.
Queridos filhos e netos, foi
depois desta iniciativa falhada, quando regressei ao acampamento dos flamengos,
já de manhã, que soube ser Ramiro um filho bastardo de dona Urraca, um
meio-irmão de Afonso VII. Embora tivesse sido o último a conhecer a intriga
de Compostela, foi bom ter finalmente a certeza de que nunca houvera
qualquer troca de meninos há quase quarenta anos. Eu era filho de Egas Moniz e
de Dordia Viegas e o rei de Portugal do conde Henrique e de dona Teresa (??).
Não precisava de me atormentar mais. Nesse momento clarificador, olhei para o
Céu e pedi a meu pai que me perdoasse por ter duvidado dele, mas logo me
distraí, pois as negociações matinais com os cruzados estavam a correr mal.
Temos direito a pilhar a cidade!, lembrava Arnaldo Aerschot. Ainda indignado
com o que se passara com os reféns, o rei de Portugal apresentou as suas
condições: a vida dos lisboetas tinha de ser garantida, não aceitava massacres,
roubos ou estupros de mulheres. Por fim, exigia uma entrada das tropas ordeira.
Todos têm de se comportar!, gritou o meu amigo.
Ficou decidido que só circulariam
em Lisboa dois grupos. O primeiro, composto por cento e quarenta
anglo-normandos, entraria pela Porta da Alfofa. Quanto ao segundo, incluiria
cento e sessenta alemães e flamengos, que a partir da porta do Sol fariam a
inspecção da cidade, encontrando-se no castelo lisboeta com o outro grupo, para
ambos recolherem o saque. Por fim, os portucalenses só entrariam depois dos cruzados,
mas Pêro e Gualdim Pais acompanhariam os anglo-normandos, ficando eu e Peres
Cativo com alemães e flamengos. Mantende-vos junto a mim, disse-me Gistelles. A
meio da manhã, verifiquei com pesar que as falhas de autoridade do chefe
flamengo eram evidentes. Os homens ignoravam as suas ordens e cheguei a
protestar junto dele, quando mirei o vasto contingente que se lançava nas ruas:
são quase trezentos, muitos mais do que o combinado! Os mouros vão sentir-se
enganados!
De nada serviram os meus avisos,
flamengos e alemães surpreenderam-me pela ira e pela ganância demonstrada. Aos
magotes, fosse pelas portas, fosse pela mina, avançaram numa espiral de
violência facínora que o bem-intencionado Cristiano Gistelles não conseguiu
evitar. Nesse dia, morreram às mãos dos flamengos vários dos anciãos notáveis
com quem tínhamos negociado a rendição, incluindo o alcaide da cidade. Mais
grave ainda foi o assassínio do bispo dos moçárabes, um homem calmo e
respeitador, um resistente às tentativas canalhas dos Mantos Vermelhos, que
agora morria às mãos dos cristãos, cuja entrada na cidade esperara com alegria.
Do lado ocidental, coisa
semelhante se passou. Contou-me depois Pêro Pais que um vasto número de
anglo-normandos, cerca de quatrocentos, fugiu ao controlo de Hervey Glanville e
passeou, em fúria, na cidade. O condestável inglês alegou que haviam sido
instigados por um sacerdote de Bristol, mas só a meio da tarde conseguiu
acalmar os ânimos, o que não impediu os habitantes de Lisboa de passarem um
péssimo bocado.
Meus queridos filhos e netos, a
guerra é uma coisa estúpida, uma desordem total, um regresso ao pior dos homens,
aos tempos em que só existia a vida, a morte e a luta pela sobrevivência». In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das Letras,
2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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