Afonso
Henriques
Nascimento de
uma nação...
«(…) Abrem-se as portas do aposento,
aparece o conde Henrique, ofegante, desalinhado, olhos imediatamente achados nos
da mulher na cama, a felicidade e o reconhecimento estampados no rosto. No leito,
a mulher sorri-lhe feliz, estende-lhe os braços num convite. O conde Henrique não
lhe perde os olhos enquanto avança, um passo após outro, na fruição de cada momento
que ainda o separa da que lhe deu um herdeiro: Teresa, minha mulher. Tomai-me os
braços, senhor meu, que muita precisão têm de descansar nos vossos. Ele apressa-se
a tomar-lhe as mãos, senta-se na cama, mira-a, abraça-a. Os dois enlevam-se na certeza
dum futuro que há muito desesperavam de alcançar. O conde ordena às aias que
saiam, elas apressam-se a obedecer, esvoaçam pelo aposento e saem. Sozinhos, Henrique,
mais feliz que nunca, afaga o rosto de Teresa, beija-a. Os dois estão radiantes.
Teresa de Leão sorri, esforça-se por que o entusiasmo se lhe sobreponha à fraqueza
que sente, quer corresponder ao entusiasmo do marido, é uma mulher realizada.
Consegue afirmar, exangue, calorosa: é um menino, senhor meu marido, ó o varão que
tanto haveis esperado para o vosso trono..., é o vosso filho, Afonso Henriques!
À porta do quarto aparece um homem,
tem o bebé nos braços. Parou, parece que o chão lhe tomou os pés sem tenção de lhos
largar, as vestes de físico da corte marcam-lhe bem a imobilidade da silhueta.
O conde vê-o parado na moldura da porta, incompreensível na hesitação, despropositada
imobilidade aquela, com o varão do Condado nos braços. Ordena-lhe, premente, que
se aproxime: vinde, vinde rápido, então?! O físico hesita mas acaba por dar um passo
e depois outro, lentamente, como se arrastasse consigo o que não devia. Mas apressai-vos,
homem! Se assim me trazeis a luz do Condado e de nós todos, como me traríeis vós
a tragédia?
As suas palavras provocam o oposto
do pretendido, o físico imobiliza-se, expressão indecifrável que a penumbra do aposento
só deixa adivinhar. Exasperado, o conde Henrique corre para ele e toma-lhe o bebé,
abre os panos que o envolvem, na confirmação urgente do sexo, o largo sorriso amplia-se-lhe
na cara. Regressa à cama e a Teresa e é ele que lhe mostra o menino, tão orgulhoso
como ela. Deposita-lho no colo, o recém-nascido reconhece o corpo que o gerou e
aninha-se, os dois miram a descoberta do futuro do Condado à medida que o conde
o desnuda com as mãos talhadas por outras tarefas menos gentis.
Caem os panos restantes, o pequeno
corpo exposto, inteiro, fere-os em lugar de os enlevar. Os sorrisos esvaem-se-lhes
até ao estupor, onde acaba por alastrar o temor, logo seguido do desespero. Dona
Teresa já fugiu com os olhos num esgar de repulsa, afasta de si o bebé, empurra-o
para o lado numa recusa desesperada do inevitável. O menino é um bebé perfeito,
excepto por uma das pernas, torta, raquítica, mais pequena que a outra, sem préstimo
para cumprir o que conde Henrique sonhou e o Condado precisa e espera, e que contrasta
inerte com os bracinhos e os olhos que mal vêem pedindo o conforto do corpo da mãe.
Conde Henrique toma o menino,
olha-o inteiro, chocado com o contraste brutal entre a perfeição invulgar do pequeno
corpo e a horrenda perna enfezada. Sem conseguir articular palavra, fulmina com
o olhar o físico, que parece diminuir de estatura para logo depois olhar o Alto,
numa revolta que só alguns desesperados se atrevem a mostrar perante o Criador.
A quem tanto ele rogou a graça da expansão do seu Condado, precisamente ao
serviço d’Ele.
O futuro conhece-o agora quando antes
só o antevia, esperançoso num Condado crescido contra os infiéis sarracenos. Nada
lhe resta agora do que acalentou. Desata-se-lhe no estômago o tumulto, enquanto
levanta o menino acima da cabeça e inicia um longo urro que enche o aposento e
se propaga pelos corredores e salas do castelo. Teresa de Leão tudo viu e vê em
silêncio, o temor estampado na face belíssima, as mãos trementes levantando os lençóis
até que a cubram por completo». In José Carlos Oliveira, D. Afonso
Henriques, O Primeiro Herói, 2016, Oficina do Livro, 2016, ISBN
978-989-741-419-0.
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