1
de Agosto de 1914
«Odiava
o homem com quem me devia casar naquele dia. Uma mão foi estendida e cobriu-me o
pulso. Não tinha pelos e as unhas estavam aparadas e bem cuidadas. Tranquila, Fleurette.
Não percebera como estava inquieta. Recompõe-te, continuou o meu irmão. O nosso
pai quereria que estivesses composta nesta representação tão pública da família.
Henri ergueu-me o queixo sob o véu que, apesar de diáfano, me esconderia o suficiente
para camuflar a expressão angustiada. A referência intencional de Henri ao nosso
amável pai exigia a minha obediência. E, acima de qualquer coisa, era obediente.
Diz-se que todos fazemos escolhas nas nossas vidas, mas nasci numa família que fez
praticamente todas as escolhas da minha vida por mim. Em sua defesa, não tive
grandes motivos de queixa. Era a filha preciosa, amada e admirada como um tesouro.
No entanto, só recentemente tinha compreendido que não se tratava apenas de uma
imagem encantadora. Era realmente o tesouro da família e podia ser trocada como
se fosse moeda, negociada como dinheiro humano. Era tão impotente como um soberano
de ouro reluzente passado de uma mão para outra. Um negócio fechado. Uma transacção
assegurada. E, depois de concluído o acordo, bastando apenas o ritual para confirmar
a sua existência ao mundo, a minha angústia de nada importaria. Fiz outra tentativa
para invocar razões legais, o meu último reduto, o único aspecto daquela união
maldita atrás do qual poderia tentar esconder-me. Parecia-me que a guerra poderia
ser minha aliada.
Henri, aos olhos da lei permaneceremos
solteiros. Sem o certificado do presidente da câmara, o padre não poderá casar-nos
legalmente. Dizia a verdade. Não comeces outra vez com isso, irmãzinha. Asseguro-te
que o presidente da câmara e os seus conselheiros têm mais com que se preocupar
do que um casamento da alta sociedade. Insisti pessoalmente há uma hora e nem mesmo
o nosso nome, e o peso que tem, ou as minhas ameaças e também as de Aimery, conseguiram
convencer o seu assistente a interromper as reuniões municipais em que se discute
a guerra. Além disso, o presidente da câmara e o seu adjunto nem sequer estão
em Grasse, explicou, parecendo exasperado por saber que este último facto era do
meu conhecimento.
Era verdade. Deveríamos ter tido a
nossa cerimónia civil no dia anterior, mas com a França à beira da guerra, esperando
apenas a declaração formal, nenhuma câmara municipal no país inteiro se teria mostrado
inclinada a preocupar-se com a formalização legal de um casamento, mesmo que envolvesse
famílias como as nossas.
Quando regressa o presidente da câmara?
Henri ergueu um ombro impotente. Amanhã, espero. A reunião de emergência em
Nice, na prefeitura, terminará hoje, com sorte, com a formalização de uma declaração
de guerra. Não poderá outra pessoa... Não, interrompeu. Não será bem visto que um
representante subalterno queira realizar um casamento hoje com a nação no alvoroço
em que se encontra. Mesmo que fosse autorizado a fazê-lo. Quis insistir no meu
argumento, mas Henri estava preparado. Vamos, continuou, cortando o ar com uma mão
erguida. Basta. Foi difícil convencer o padre a avançar, mas, uma vez que acedeu,
suspeito que não terás autoridade superior à sua.
Tenho a minha moral... Esquece isso,
Fleurette, afirmou, sacudindo pó imaginário das calças. Avançamos para uma
guerra com a Alemanha! As circunstâncias não são as adequadas. Deus perdoar-te-á.
É apenas uma formalidade e, seja como for, a cerimónia civil realizar-se-á mesmo
assim. Quando? O presidente da câmara mandou dizer que fará um esforço por nós.
Esperamos que seja amanhã. A raiva acumulada deixava-o corado e vi-o passar um dedo
entre o colarinho e o pescoço, dirigindo-me um esgar de desagrado. Nem eu nem a
família De Lasset te perdoaremos se atrapalhares esta união tão importante. Não
poderemos cancelar após meses de preparação. A cidade precisa deste casamento. Além
disso, as nossas ordens de mobilização chegarão a qualquer momento. Vamos
assegurar pelo menos o casamento religioso. Os deveres civis poderão ser resolvidos
discretamente. Sei que não é o normal curso dos acontecimentos. Sei que sim. Mas
preciso que toleres a discrepância. Se a nossa igreja pode fazê-lo, tu também poderás.
Por favor, pensa em todos os outros... Pensa em qualquer pessoa além de ti própria,
para variar.
A repreensão magoou-me. Não era egoísta,
mas estava irritada com o padre por vergar as regras da nossa fé, as leis do nosso
país, apenas porque as famílias mais ricas o exigiam. Sem dúvida que Henri ou o
meu futuro marido, igualmente insensível, teriam coagido o padre... Talvez com a
promessa da nova janela para a abside? Henri, deitar-me-ei com um homem que não
será legalmente o meu marido, protestei. Não será teu marido aos olhos da lei, mas
isso será resolvido. Que esperas?» In Fiona McIntosh, O Perfume Secreto, 2015,
Quinta Essência, Oficina do Livro, 2016, ISBN 978-989-741-578-4.