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«(…) Ele retira a mão do meu
peito e acaricia-me a face. Shalom Aleikhem, dodi, murmura. A paz seja contigo,
bem-amado. Sabe aramaico, o que me conforta. A barba que desponta torna-lhe as
faces ásperas, e o cabelo castanho, que lhe dá pelos ombros, está todo
emaranhado. Mostra-me um sorriso cansado mas feliz. Gostaria de se abandonar e
rir o riso exausto de um homem que tem estado a chorar, penso. A neblina do
esquecimento dentro de mim levanta-se nesse momento e reconheço-o. Contudo,
parece mais velho do que me recordo, e desgastado no corpo. Será que está
doente? Quando estendo a mão, com a intenção de lhe tocar na testa para ver se
tem febre, ele agarra-ma e beija-a como se nos tivéssemos perdido um do outro
há muitos anos. Respondi-te escondido no trovão, diz, tal como sempre nos saudávamos
desde a infância. É uma citação do nosso versículo preferido dos Salmos. Onde
estamos? Formulo a pergunta com os lábios, pelo menos, é essa a minha intenção,
mas por qualquer motivo não consigo fazer-me entender.
Yeshua mostra-me uma expressão
confusa. Em breve serás tu outra vez, diz-me. E nós vamos todos ajudar-te. Perscruto
os rostos à minha volta, contando-os, catorze. De cada lado de Yeshua estão os
meus velhos amigos, Miriam de Magdala e Yohanon ben Zebedee. Yohanon cortou o
cabelo negro e espesso tão curto que parece ter posto uma touca jónica.
Dirige-me um sorriso encorajador através das lágrimas. Os olhos delineados a kohl
de Miriam parecem pisados. Traz vestida a sua túnica cor de açafrão, uma oferta
de Yeshua, mas agora parece demasiado grande para ela, dificultando-lhe os
movimentos. Por trás dela, trajando uma elegante toga e apertando o nariz,
encontra-se Nicodemus ben Gurion, um dos benfeitores de Yeshua. Olha para mim
com ar de quem tem medo de que eu seja um impostor. Será possível que eu tenha
mudado tanto que pareça outro?
Ao fundo, mais altos do que os
outros todos, estão os meus primos de Alexandria, os gémeos Íon e Aríston. Íon,
o mais ousado dos dois, acena-me e sorri-me, com os seus modos agarotados. Miriam
desvia-me os olhos dele quando ergue as mãos para me abençoar. Apercebo-me de
um desenho cor de vinho do Zodíaco na palma da sua mão e tento perguntar-lhe o
que é, mas tudo o que me sai da garganta é um som seco e arranhado. Começo a
ficar ansioso por ver a minha mãe e o meu pai, mas não me parece que estejam
connosco. Só tomo consciência de que estou a chorar quando sinto nos lábios um
sabor salgado. A mulher dos membros longos, que agora reconheço como sendo a
minha irmã Mia, pega-me na mão e coloca-a sobre o rosto, inalando profundamente
o meu cheiro, mas em breve começa a tossir. Quando éramos crianças, costumava
dizer que eu cheirava a pão de cevada quente. Lembro-me disso agora, tal como
me lembro do meu nome, mas há muitas outras coisas que ainda me escapam. Será
que estamos todos reunidos para o funeral do meu pai?
Onde
estão os nossos pais?, consigo perguntar-lhe num sussurro rouco. Vai correr
tudo bem, responde Mia. Não deves preocupar-te. Passa o braço à volta do velho
que está ao seu lado. O avô Shimon atreveu-se a sair de casa para estar aqui
contigo, diz-me em voz alegre. Em seguida, aponta-me a mulher pequena e de ar
cansado que segura um bocado de tecido sobre a boca. A Marta também cá está,
claro! Vieram muitos amigos. E o teu filho e a tua filha. Com um aceno da mão,
chama-os para junto de si. Nahara treme. Está com o mesmo ar que tem quando é
arrancada ao sono pelo som do trovão. Yirmiyahu, o irmão mais velho, o jovem de
cabelo comprido e olhos ansiosos, pega-lhe ao colo, para ela ficar à minha
altura. Nahara lança-me os braços à volta do pescoço. Abençoada seja a bondade do
Senhor; quando se põe a soluçar, consigo dominar a tremura das mãos o tempo
suficiente para lhe afagar o cabelo castanho e macio, embora o meu toque a faça
chorar ainda mais». In Richard Zimler, O Evangelho Segundo Lázaro, Porto Editora, 2016,
ISBN 978-972-004-854-7.
Cortesia
de PEditora/JDACT