sábado, 26 de janeiro de 2019

A Filha do Sangue. Anne Bishop. «Poderia ter dito a eles. Entretanto, quando se aproximaram dele, tímidos, cautelosos, ansiosos por questionar um homem que ao longo dos séculos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Terreille
«(…) E onde estão os bons entre nós?, perguntou o homem, com sonolência. Lucivar beijou-o na cabeça. — Foram destruídos ou escravizados. Ofereceu a taça. Beba até ao fim, Irmãozinho, e estará tudo terminado. Assim que o homem sorveu o último gole, Lucivar usou a Arte para fazer desaparecer a taça. O homem no barco riu. Me sinto bastante corajoso, Yasi. Você é muito corajoso. As ratazanas... Já não tenho cul… Eu sei. Chorei, Yasi. Perante todos eles, chorei. Não importa. Sou um Senhor da Guerra. Não deveria ter chorado. Não revelou nada a eles. Teve coragem quando foi necessário. De qualquer maneira, Zuultah matou os outros. Irá pagar por isso, Irmãozinho. Um dia, ela e os outros como ela irão pagar por tudo. Lucivar massageou suavemente o pescoço do homem. Yasi. Eu... Foi um movimento repentino, acompanhado de um som agudo. Lucivar recostou com cuidado a cabeça desfalecida e levantou lentamente. Poderia ter dito a eles que o plano não daria certo, que o Anel de Obediência poderia ser ajustado o suficiente para alertar o seu possuidor de um chamado interior de força e resolução. Poderia ter dito a eles que as garras malignas que os mantinham escravizados já se haviam alastrado a territórios demasiado longínquos e que, para libertá-los, seria necessária uma selvageria mais apurada do que aquela de que o homem é capaz. Poderia ter dito a eles que, para manter um homem obediente, existiam armas mais cruéis do que o Anel, que a sua preocupação uns com os outros seria a sua destruição, que a única forma de escapar, mesmo que por pouco tempo, era não se preocupar com ninguém, estar sozinho. Poderia ter dito a eles. Entretanto, quando se aproximaram dele, tímidos, cautelosos, ansiosos por questionar um homem que ao longo dos séculos tinha-se libertado repetidas vezes mas continuava escravizado, tudo o que disse foi: sacrifiquem tudo.
Eles foram embora, desapontados, incapazes de compreender que ele estava falando a sério. Sacrifiquem tudo. Mas havia uma coisa que ele não podia, não queria, sacrificar. Quantas vezes, depois de rendido e novamente aprisionado por aquele implacável anel de ouro em torno do seu órgão, Daemon tinha-o encontrado e encostado na parede, irado, chamando-o de louco e covarde por se ter entregado? Mentiroso. Mentiroso melífluo e experiente nos assuntos da corte. Certa vez, Dorothea SaDiablo procurou Daemon Sadi desesperadamente depois de ele ter desaparecido de uma corte sem deixar rasto. Para encontrá-lo foram necessários cem anos, e dois mil Senhores da Guerra pereceram ao tentar recapturá-lo. Ele poderia ter usado aquele pequeno e selvagem Território sob seu domínio e conquistado metade do Reino de Terreille, poderia ter-se tornado uma ameaça tangível a usurpação e absorção que Hayll provocava em todos que tocava. Em vez disso, leu uma carta enviada por Dorothea, que lhe chegou pelas mãos de um mensageiro. Leu-a e entregou-se. A carta dizia apenas: entregue-se até à lua nova. Cada dia que passar além disso, arrancarei um pedaço do corpo do seu irmão como pagamento pela sua arrogância. Lucivar sacudiu-se, tentando expulsar os pensamentos indesejáveis. De certa forma, as memórias revelavam-se piores do que o chicote, uma vez que o faziam pensar em Askavi, com as suas montanhas altaneiras a cortar o céu e vales repletos de cidades, fazendas e florestas». In Anne Bishop, A Filha do Sangue, Jóias Negras, 1998, Saída de Emergência, 2009, ISBN 978-972-883-977-2.

Cortesia de SaídadeEmergência/JDACT