Coimbra.
Julho de 1117
«(…) A rapariga soltou uma
gargalhada vitoriosa, o que ainda feriu mais o orgulho do príncipe. Humilhado,
este levantou-se num pulo e atacou-a. Desta vez, prevendo que ela se iria
mexer, estacou um instante antes de chocarem e, quando ela se desviou, agora
para a sua esquerda, caiu-lhe em cima. Agarraram-se, esgatanhando-se um ao
outro, puxando os cabelos ou a roupa, como fazem sempre as crianças quando
lutam. Mas, no auge daquela refrega infantil, Fátima conseguiu mais uma vez
empurrá-lo, e Afonso Henriques caiu desamparado pela segunda vez. De súbito,
sem ninguém saber de onde ela o tinha tirado, apareceu um punhal na mão direita
da rapariga. Raimunda levou as mãos à boca e Zaida reagiu, gritando à irmã:
não! Fátima ignorou-a e rosnou entredentes: o califa vai matar a vossa mãe e eu
vou matar-vos! Afonso Henriques recuou, rastejando, mas ela dobrou o joelho, pousou-o
no chão e apontou-lhe a faca, ameaçando-o: vou furar-vos a barriga,
cristãozinho! Nesse momento, ouviu-se o autoritário grito de Zulmira: Fátima!
A rapariga olhou para a mãe, que
se aproximara, tensa e aflita. Pelo canto do olho, viu também que, descendo
pelas escadas de madeira, aparecera uma comitiva de três pessoas. À frente,
vinha dona Teresa, altiva e bela, envolta num manto escarlate. Acompanhava-a o marido,
Bermudo, bem como o irmão mais novo deste, Fernão Peres Trava, ambos com capas
galegas de seda esverdeada sobre os ombros. Surpreendidos, olhavam para a
celeuma entre as crianças.
O Afonso é o príncipe, não lhe
podeis fazer mal, murmurou Zaida. Fátima mirou Afonso Henriques e sorriu com
desprezo: fica para outra vez. Levantou-se, enquanto dona Teresa e os irmãos
Trava se acercaram. Radiosa, com os seus longos cabelos morenos apanhados por
uma pequena touca que lhe moldava a cabeça, e o olhar vivo e alegre de quem
recebera boas notícias, dona Teresa ficou, porém, imediatamente desinteressada
dos catraios quando passou por Zulmira e parou a olhar para ela. Confundida,
franziu o sobrolho e perguntou: quem sois vós? Zulmira explicou-se: era a
esposa de Taxfin, governador de Córdova, um dos comandantes das tropas do
califa, e ficara prisioneira no ano anterior, aquando do primeiro cerco a
Coimbra, juntamente com as suas filhas. Dona Teresa parecia procurar na memória
aquele rosto, associando-o a algum local, algum acontecimento passado. Todavia,
não a deve ter conseguido identificar, pois interrogou-a: já nos conhecemos?
Zulmira negou apressadamente. As
três mouras tinham permanecido em Coimbra durante esse ano, enquanto dona Teresa
viajara por Braga, Viseu e Tui. E, nas últimas semanas, a rainha estivera
ocupada com afazeres militares e raramente passeava pela cidade. Aliviada, dona
Teresa abriu de novo o seu bonito sorriso e disse: já tinha ouvido falar de
vós. Achei que vos conhecia, mas... Como se o assunto já não a consumisse,
encolheu os ombros e pousou o olhar no filho, que agora já estava de pé, ao
lado dos outros rapazes e de Raimunda. Com um tom sério, disse-lhe: fica-vos de
emenda. Nunca luteis com mulheres, são piores do que os homens! Um pouco atrás
da rainha, Bermudo, seu marido, riu-se de forma forçada, denotando um certo
nervosismo, enquanto Fernão Peres se aproximou de Fátima e exigiu que esta lhe
desse o punhal, o que ela fez a custo. Já na posse da arma, o Trava sorriu,
piscando o olho a Afonso Henriques, procurando forjar uma cumplicidade masculina.
Porém, o príncipe ignorou-o, enervado com a derrota na luta e com o sermão
público da mãe.
Dona Teresa afastou da testa uma
madeira de cabelo e perguntou: ouviram as trompetas dos sarracenos? Entusiasmadas
com as suas brincadeiras, as crianças não tinham escutado os toques de retirada,
mas Zumira empalideceu. Engolindo em seco, viu surgir no pátio meu pai Egas e
meu tio Ermígio, vestidos nas suas vistosas dalmáticas e com a cara avermelhada
devido à correria pelas muralhas. Animada, dona Teresa perguntou-lhes: confirma-se
a partida do califa? Ermígio sorriu. Sim, estão a levantar o acampamento! Então,
Teresa virou-se para as crianças e declarou: Coimbra está salva! Ali Yusuf
vai-se embora! Enquanto se ouviam gritos de euforia por toda a alcáçova,
Raimunda notou que Fátima ficara chocada com a novidade, e olhava para a mãe,
incapaz de pronunciar uma palavra, pedindo-lhe explicações só com a expressão
conturbada do seu rosto». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal,
Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
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