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As
Princesas de Córdova. Silves, 1145
Córdova, Janeiro de 1145
«(…) Tal como vós..., replicou de
imediato Ismar. Ofendido, o marido de Fátima protestou. Queria apenas esconder
os prisioneiros, mas logo que pudesse regressaria a Santarém, onde se reorganizaria.
Ismar poderia ir lá ter, se as coisas lhe corressem mal. Não vou perder a minha
cidade!, garantiu este. Naturalmente, ficaram num impasse. Nem Ismar autorizava
Abu Zhakaria a partir, nem este queria fazê-lo contra a vontade do príncipe,
para não se expor à acusação de traição. Com um suspiro desalentado, cedeu mais
um pouco: deixo-vos as minhas tropas. Só levo dez soldados. Ismar ignorou esta
última sugestão e ordenou a Malik que fosse buscar a prisioneira Chamoa.
Depois, barafustou: não se cala... Desde que chegara ao Azzahrat, e mesmo
fechada numa cela, Chamoa lançava, vezes sem conta, as suas questões. O que
sabia Martinho de Soure sobre o nascimento de Afonso Henriques? O que lhe
contara o pai deste, o conde Henrique, quando o pároco o confessara pela última
vez, antes de ele morrer, em Astorga? O padre já não a pode ouvir, comentou
Ismar. Pouco depois, surgiu na sala Chamoa, que nem parecia em cativeiro, pois
as suas vestimentas estavam limpas, a sua cara lavada, o seu cabelo bem
penteado. Sois muito bela..., apreciou Ismar. Orgulhoso, gabou a forma superior
como os árabes de Córdova tratavam os prisioneiros, mantendo-os asseados e bem
alimentados. Depois, interrogou-a: o que sabe Martinho de Soure? Como a minha
cunhada se manteve em silêncio, Ismar lançou a Zhakaria um inesperado desafio:
se Martinho de Soure revelasse os seus segredos, o governador de Santarém poderia
partir de Córdova, levando Chamoa e Mem! Irei questionar o padre!,
entusiasmou-se Ismar.
Temendo o pior, Abu Zhakaria
tentou pressionar Chamoa. Os exércitos de Ibn Qasi estavam próximos, iria
acontecer uma batalha perigosa em Córdova e ele queria rumar a Hisn Abi Cherif
antes disso, com ela e com Mem, pois temia a fúria vencedora do sufi.
Zaida nunca nos fará mal!, garantiu Chamoa. Bruscamente irritado, num arremesso
autoritário Ismar ordenou a Malik que trouxesse à sala o almocreve Mem. Que ides
fazer-lhe?, perguntou Chamoa, alarmada. Cínico, o príncipe de Córdova afirmou
que a tinha de manter viva, para impedir que Afonso Henriques atacasse
Santarém. Mas não ao almocreve. Se ela não lhe explicasse o motivo das
perguntas ao pároco de Soure, degolaria Mem. À vossa frente, rematou Ismar. Tensa
mas ainda firme, Chamoa tentou manter-se silenciosa, mas quando o almocreve
chegou e foi obrigado a genuflectir-se, e sobretudo quando o alfange de Malik
se aproximou do pescoço dele, a minha cunhada rendeu-se.
Há dúvidas de que Afonso Henriques seja
o verdadeiro filho do conde Henrique e de dona Teresa, explicou. Como
o herdeiro destes nascera aleijado das pernas, suspeitava-se de que fora
trocado por outro menino, talvez o filho mais velho de Egas Moniz. E só
Martinho de Soure podia confirmar tal trama, pois o pai de Afonso Henriques confiara
nele antes de morrer. Por isso, o questiono, confirmou Chamoa. Enquanto Malik
recolocava o alfange na cintura, um estranho silêncio caiu sobre a sala, como
se o destino geral do mundo se tivesse subitamente esclarecido. Agora entendo o
pedido que Afonso VII me fez, a exigência do rapto de Martinho de Soure...,
murmurou Ismar. Mais confiante, mandou Malik devolver às masmorras Chamoa e Mem.
De seguida, repetiu o que já dissera a Abu Zhakaria: iria interrogar o padre dos
templários e, se este revelasse a verdade, eles poderiam partir. Caso contrário,
Chamoa permanecerá no Azzahrat! Entusiasmado, Ismar dirigiu-se a uma mesa, onde
estavam pousados várias tesouras e punhais. A tortura era a melhor forma de
fazer falar um homem, declarou ele, enquanto Zhakaria abanava a cabeça.
É um cobarde, vai esfrangalhar um
indefeso.
Ao longo dessa noite, no Azzahrat
ouviram-se os gritos lancinantes de Martinho de Soure, pároco da Ordem do Templo,
que foi fustigado com violência na sala da piscina de mercúrio, onde os convidados
se vinham espelhar, para melhor apreciarem o esplendor de Córdova. Só quando a madrugada
raiou é que Zhakaria foi mandado chamar outra vez. Preocupada, Fátima abraçou-o
à porta do quarto, pois temia a loucura do príncipe de Córdova, mas o marido acalmou-a.
Ninguém é melhor do que eu com o alfange. Se Ismar me atacar, mato-o!, prometeu
à esposa». In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Oficina do Livro, Casa das
Letras, 2017, ISBN 978-989-741-713-9.
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