«(…) O homem mantém-se impassível.
Colin e François apeiam-se. Apesar de ter chegado já o crepúsculo, distinguem o
burel e a tonsura monacais, as sandálias de corda e o rosário de buxo. Lá em
cima, a grande cruz parece vacilar. As suas linhas ondulam num orvalho vaporoso.
Um último raio de sol avermelha-lhe a ferragem em tons de cobre velho, e
depois, ao mergulhar no horizonte, tinge-a de uma fulguração mais carregada, mais
profunda, como que de sangue. Colin persigna-se e tartamudeia algumas fórmulas piedosas.
O monge, tranquilizado por aquela veneração evidente, descruza os braços e dá as
boas-vindas em latim. Villon detecta uma entoação popular, um latim mais de cozinha
do que de sacristia. A pança fartamente dilatada do religioso é reveladora da medida
da sua ascese. Este penitente tem bom apetite, diz para consigo François, e portanto
a alma serena.
Sede bem-vindos, senhores meus.
Sou Paul de Tours, o padre prior. Vamos levar estas pobres bestas ao bebedouro.
O jardim do claustro parece-se com um pátio de casa rural. Aos pés de uma Virgem
com os dedos a esboroar-se amontoam-se fardos de palha. Há tranças de alho penduradas
das ogivas. Um forte odor a leite fermentado incensa aqueles lugares devotos. Pedaços
de lenha espinhosa, a estalar de ressequida, obstruem o acesso à capela. François
e Colin seguem o monge gordo, que, arregaçando o hábito, galga os obstáculos com
uma agilidade inesperada. No interior, uma cena muito diferente aguarda os visitantes.
Uma dúzia de religiosos estão de
pé diante de escrivaninhas rudimentares pejadas de cadernos, de tinteiros, de folhas
de pergaminho. A toda a volta, nas estantes baixas, vêem-se encadernações que reluzem
à luz das velas. Ao meio, um círio ilumina um gato velho que dormita, enovelado,
numa poça de cera branca. Como um senhor que estende o braço indicando os seus domínios,
Paul designa orgulhosamente a nave: a biblioteca! Vários crânios calvos voltam-se
severamente para olhar os intrusos, que examinam por um momento, tornando a mergulhar
logo a seguir na leitura, com os dedos ásperos trotando sobre a página como insectos,
introduzindo-se entre os parágrafos, as iluminuras, recolhendo o pólen do texto,
aflorando a exegese, arranhando os mistérios. Villon perscruta a penumbra à procura
do altar, do confessionário, da pia de água benta. Ali não há senão livros.
O sino tange as seis badaladas vesperais,
anunciando a hora do repasto. Uma sala exígua, sem janela, serve de refeitório.
O prior abençoa o pão das vésperas. Os convivas sorvem ruidosamente das tigelas
grandes tragos de um caldo com tomilho. Depois de recitadas as graças à pressa,
precipitam-se de novo de regresso à capela. A necessidade de se alimentarem parece
constituir para eles uma perda de tempo exasperante.
O irmão Paul sacrifica ao dever de
hospitalidade, continuando alguns instantes mais na companhia dos dois convidados.
Esfaimados, Colin e François devoram o que sobra do pão, raspam o fundo da caldeira,
tragam grandes goladas de leite de cabra.
Não estamos habituados a receber
visitas. As coortes dos peregrinos raramente por aqui passam. Falsos devotos
armados de crucifixos de pacotilha! Sem bater os caminhos do coração, percorrer
a solidão da a1ma, nada valem os atropelos às portas de Jerusalém. O monge
gordo levanta-se. Aproxima-se de uma arca de carvalho cuja chave só ele tem e volta
trazendo duas garrafas de vinho. Depois de se contentar com um simples gole, diverte-se
ao ver a prontidão com que Colin e François emborcam o resto pelo gargalo.
Villon limpa a boca com a manga. Não
nos será permitido consultar as vossas preciosas obras? Isso depende do irmão Médard,
que raramente está de bom humor. Reza muito pelas criaturas, mas detesta a companhia
delas. Até mesmo a nossa. Repreende-nos a todo o momento, acusa-nos de
manipularmos mal os livros, de lermos mal, de lermos depressa de mais, de
lermos devagar de mais. Villon pergunta-se se será ali mesmo que estão guardados
os textos que veio buscar e que farão vergar Roma. Paul levanta-se bruscamente.
Abençoa os dois homens sorrindo. Podeis dormir aqui. Tendes palha, ali, no canto.
O prior recusa um escudo de
esmola que François lhe estende e sai do refeitório. Um rectângulo de céu puro deixa-se
entrever brevemente, após o que a porta torna a fechar-se sobre os odores
bafientos, a semiobscuridade sufocante. O banquete dado em honra dos emissários
de Luís XI foi, para dizer o menos, frugal, e a recepção, inteiramente desprovida
de solenidade. Os fornecedores de Fust têm um ar lamentável. Parece estranho
que o alemão se abasteça junto destes monges andrajosos, tanto mais que as obras
que lhe fornecem atentam contra a integridade da Igreja. No entanto, o irmão Paul
tem todo o ar de um bom cristão.
Exausto,
Colin empurra a sua enxerga contra a parede e adormece amaldiçoando a sua triste
sorte. Villon, por seu lado, não se ofende com a frugalidade deste acolhimento.
Receava até ter de se pavonear num jantar de diplomatas ou de negociantes. Pouco
importa que a entrada se faça pela porta grande ou pela pequena: o lugar onde está
é o limiar de um reino secreto. Disso, tem ele a certeza. Excitadíssimo, oferece-se
um último trago de vinho de missa, troca um brinde com a sua própria sombra projectada
na parede, e sopra a vela em seguida. Poisa o tricórnio no chão e deita-se, também
ele, ao comprido, sem fechar as pálpebras. Com as mãos cruzadas atrás da nuca, sorri
aos milhares de estrelas que imagina para lá dos madeiramentos do tecto». In
Raphael Jerusalmy, Os Caçadores de Livros, 2013, tradução de Miguel Serras Pereira,
Clube do Autor, Lisboa, 2015, ISBN 978-989-724-237-3.
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